8-8-2001

 

MAFALDA ARNAUTH

(n. 4-10-1974)

 

Site: http://www.mafaldarnauth.com/

Outubro de 2005:  Novo CD, "Diário" ler aqui

Setembro de 2008: Novo CD, Flor de Fado", aqui

 

 

 

Comecei a interessar-me pelo fado, nos meus anos de Bruxelas (1994-2000). Longe de Portugal e da família, comecei naturalmente a gostar de ouvir música portuguesa, e também o fado – para matar as saudades. Depois disso, continuo a ouvir fado, especialmente a conduzir. De facto, em casa prefiro ouvir música clássica, que, porém, não se presta a ser ouvida no carro.

Prefiro os novos intérpretes do fado, como Mafalda Arnauth (“Mafalda Arnauth”, “Esta voz que me atravessa”), a quem dedico esta página, mas também Maria Ana Bobone

 

(“Luz Destino”, “Senhora da Lapa”) e Margarida Bessa (CD com o seu nome). Entre os rapazes, distingo Camané (“Na linha da vida” e “Esta coisa da alma”) e Paulo Bragança (“Notas sobre a alma”, “Amai” e “O mistério do fado”). Maria Ana Bobone levou mesmo a cabo um estudo sobre o fado para uma cadeira do curso Ciências da Comunicação da Universidade Católica.

Mafalda Arnauth é, até ver, um dos elementos femininos do fado mais representativos das novas gerações. Pessoalmente, prefiro o seu primeiro disco ao segundo, lançado em 2001. Na visita de Clinton a Lisboa, foi escolhida para cantar o fado para ele, embora se possa suspeitar que cantar bem não foi a única razão – é especialmente bonita e elegante. Veio a notícia no New York Times de 30-5-2000, pela pena da jornalista Elaine Sciolino, assim: “At the state dinner tonight, Mr. Clinton was serenaded by Mafalda Arnauth, Portugal's hottest young fado singer. Fado is melancholic Portuguese music played with string instruments and built around the concept of saudades, the yearning for a past that was better and may never return.”

 

 

 
 

Nota biográfica:

MAFALDA ARNAUTH nasceu a 4 de Outubro de 1974, em Lisboa. Surge como um meteoro no circuito do Fado após ter participado, em 1995 . num espectáculo no Teatro S. Luís, ao lado de alguns dos grandes nomes do Fado. A partir dessa altura Mafalda Arnauth nunca mais parou, passando por alguns programas de Televisão e Rádio, por vários palcos no estrangeiro (Luxemburgo, Alemanha, França, Inglaterra) e um pouco por todo o país. Em 1996 entra como artista privativa da Taverna do Embuçado (uma das principais Casas de Fado de Lisboa) e, participa na Cimeira dos Países de Língua Portuguesa que tem lugar em Moçambique.

Em 1997, em Paris, está presente num Encontro Internacional de Poesia onde interpreta vários temas de Camões, Fernando Pessoa e Pedro Homem de Mello. No mesmo ano desloca-se a Londres actuando ao lado de Argentina Santos e Carlos Zel. Ainda em 1997 está presente em Frankfurt, juntamente com Helder Moutinho, numa Semana dedicada a Portugal e organizada pela Associação Cultural Portugal-Frankfurt . Em 1998 desloca-se a Paris para um concerto em directo para a Rádio Alfa. Destaque para a presença na Expo-98 em diversas actuações - no Palco do Fado durante a primeira Semana de Fado, no Palco do Jazz em dois espectáculos integrados no projecto "Novas Vozes de Um Fado Antigo" e no mesmo palco mais duas actuações no projecto "De San Telmo à Mouraria - Fado e Tango". Ainda em 1998 participa no Tanz & FolkFest Rudolstadt, o maior Festival que se realiza na Alemanha dedicado às Músicas do Mundo, representando o fado juntamente com Helder Moutinho. Participa ainda neste ano de 98, em Innsbruck (Áustria), no Festival "Voices" integrando o projecto da Ocarina "Duas gerações a cantar o Fado" ao lado de Maria Amélia Proença. 1999 - Com aquele projecto da Ocarina esteve presente em 5 concertos, de par com Maria Amélia Proença, em Bremen (Alemanha) no passado mês de Março, no Festival Women in (E)motion. Mafalda está hoje a afirmar-se como uma das mais sólidas e promissoras vozes do fado recebendo muitos convites para espectáculos no país e no estrangeiro. Para este ano que decorre, tem já agendados concertos para a Alemanha, Espanha e Holanda.

 

 

EXPRESSO n.º 1874, Actual, de 27 de Setembro de 2008

 

OLHA PARA A DÉCADA DE TRABALHO COM QUE JÁ CONTA COM LEVEZA E É ATRAVÉS DA ESCRITA QUE ASSUME O SEU CRESCIMENTO ARTÍSTICO.

Texto de Alexandra Carita

 

 

Mafalda Arnauth 

Cantautora: “No fado só deixará a sua marca quem tiver que a deixar”.

 

O seu percurso no mundo do fado começou há dez anos. Segunda-feira lança o seu quinto álbum de originais, Flor de Fado. Pelo meio fica a memória e a experiência de muitos, muitos espectáculos, muita estrada calcorreada, e muitas experiências vividas. Mas ao tentar reflectir sobre o seu crescimento artístico, Mafalda Arnauth resume-o à afirmação de uma fadista que sempre se distinguiu das demais enquanto cantautora. “Este novo disco é a prova da minha afirmação como cantautora, a característica que começou por me definir enquanto fadista e acabou por desenhar toda a minha musicalidade. Por outro lado, o álbum é ainda sinónimo de coerência, teimosia e insistência, aquilo por que foi pautada a minha carreira até aqui”, dia.

O facto de escrever, considera Mafalda, torna-a numa pessoa mais real, mais atenta a tudo o que acontece à sua volta e aos outros. Basta olhar para o conteúdo das suas letras. Afirma, para que se perceba que é alguém que “bebe a vida e se questiona”. João Gil foi o primeiro a contribuir para que enveredasse por esse caminho. Não o esconde. Seguiu-se-lhe Tiago Torres da Silva. Hoje, se há algo que lhe é gratificante é ouvir as pessoas falarem do que canta. “É sinal de que o que escrevo serve os outros, é sinal de que tenho algo para lhes dar, e é sinal de que a mensagem do fado não tem obrigatoriamente que ser triste. O meu olhar positivo sobre a vida, a minha força, o meu eu guerreira não são balelas. É exactamente o que vivo”. De resto, Mafalda Arnauth não distingue a fadista da mulher, a artista da pessoa comum. “A minha atitude perante a vida é sempre a mesma. Tenho acesso à vida através da artista, mas também através da mulher, em cima de um palco ou com a família”.

A fadista considera que é cada vez mais urgente cantar “coisas” que estimulem as pessoas, que é preciso “sair do negrume”, mas sem transformar o fado numa canção ligeira. “Quem me quiser fazer feliz/ tem que fazer tudo o que se diz/ e o que diz tem que ser muito feliz”. Os versos são seus e oferece-os como exemplo para explicar que esta sua ingenuidade de escrita transmite, quando cantada, uma frescura única e muito simples. “O importante é que o público entenda a mensagem de forma clara. Somos todos pessoas comuns e nisso iguais”, continua, acreditando que um discurso mais intenso e sobretudo denso não consegue chegar a ninguém.

A ousadia de Mafalda Arnauth não passa, porém, apenas pela autoria de muitas das letras dos fados que canta. No novo disco decidiu prestar homenagem à viola de fado e à guitarra clássica, colocando os dois instrumentos em grande evidência e deixando para trás a guitarra portuguesa, que, diz ela, só pelo seu virtuosismo é sempre notada. O som dos dois instrumentos que elegeu torna-se uma espécie de fio condutor ao longo de todo o disco. Um disco que simboliza ainda um estado de alma. Um disco cuja ideia parte de um espectáculo e se constrói autonomamente. Um disco que poderia ser um livro, acredita mesmo. Apesar desse caminho de escrita não estar ainda no seu horizonte.

Quer continuar a ser fadista e só, “porque fadista eu sei que sou, sei como vivo e me atiro para a vida, de peito aberto, sem medo de sofrer e com tudo o que isso implica”. O mote serve para olhar à volta e ver como o universo do fado em Portugal se alterou nos últimos dez anos, se tornou tão maior, tão mais abrangente e tão mais populoso. “Se é tudo fado ou não, já não me preocupa. O público é soberano e o tempo resolve tudo. Espero que cada um tenha o seu nicho, o seu núcleo, o seu tempo e o seu espaço. O certo é que só deixará a sua marca quem tiver que a deixar”. Fala com à-vontade, sorri com o facto de o público se disponibilizar cada vez mais para ouvir fado, não acredita na concorrência, e bate sempre palmas a cada novo fadista que atravessa fronteiras ou enche mais uma sala. “Isso só significa que há talento”, explica. No entanto remata: “Daqui a 20 anos veremos se esta geração deu ou não frutos. Vai continuar a escrever-se história!”.

 

(Mafalda Arnauth lança segunda-feira (29-9-2008)o seu novo álbum de originais, “Flor de Fado”).

 

 

 

                                 

Ypsilon

3 de Outubro de 2008

 

Mafalda Arnauth

Flor de Fado

CD+DVD Universal

 

Nuno Pacheco

 

É o primeiro disco de Mafalda Arnauth que tem a palavra fado na capa mas é, dos cinco que ela já gravou, aquele que se afasta mais do fado. Na sonoridade, pelo protagonismo dado às violas em detrimento da guitarra (em segundo plano). Na voz, pelo afastamento de muitas das colorações fadistas presentes nas gravações anteriores (mesmo quando cantou temas como “Cavalo à solta” ou “No teu poema”) e a sua substituição gradual por uma vocalização que recorre com maior frequência a repentes dramáticos, como os das cantoras mexicanas ou de certas cantoras ligeiras. Isso é particularmente audível (e visível)no DVD que surge como bónus na edição especial do disco, gravado ao vivo no Trindade, mas também no CD se sente. E este “território da fronteira”, como ela lhe chama, deixa no ouvinte habituado ao seu registo, uma sensação de algum desconforto. Se o bem sucedido “”Entre a voz e o oceano” tem explícita ligação ao Brasil (o dueto com Olívia Byington homenageia Bethânia), já temas como “Porque é feito de alegria”, “O mar fala de ti” ou a versão de “Flor do verde pinho” parecem vir de uma outra voz que não a dela. Ou da voz que nela ainda falta ligar ao seu nome. Relevo, pela positiva, para “Quanto mais amor”,  num cruzamento de madrigal e fado, “Amor abre a janela”, “Quem me desata”, “Agarrada ao chão” ou as versões de “Povo que lavas no rio” (do reportório de Amália) e “Tinta Verde” (de Vitorino). A edição com bónus tem, para além do DVD, a vantagem de dois temas extra (trocados na sequência indicada na capa) que estão entre os melhores do disco: “Por querer bem” e o fado-milonga “Na cor do nosso sorriso”, se aqui descontarmos a “voz convidada” mas dispensável de Luis Pontes.

 

 

Dar Voz às Palavras
Por FERNANDO MAGALHÃES

PÚBLICO
Sexta-feira, 16 de Março de 2001

 

 

Em "Esta Voz que me Atravessa" Mafalda Arnauth faz a travessia entre a voz e a poesia, saborerando tudo o que existe pelo meio. Amélia Muge, senhora das palavras, produz.

 

Mafalda Arnauth é uma das estrelas mais brilhantes da nova constelação do fado cantado no feminino. Depois de um álbum de estreia promissor, a fadista apadrinhada no início de carreira por João Braga, acaba de lançar um segundo trabalho, "Esta Voz que me Atravessa", onde são visíveis o amadurecimento, quer da voz, quer da composição. E uma maior atenção posta nas palavras e nos segredos e prazeres que estas encerram.

Dito de outro modo, Mafalda Arnauth ouve-se melhor a si própria. A produção do novo disco foi entregue, com alguma surpresa, a José Martins e Amélia Muge, com quem a fadista estebeleceu uma rede de empatia e cumplicidades.

Dois anos depois de  “Mafalda Arnauth” a atitude perante a música, o fado e a gravação de um disco tinha que ser outra. Para a fadista, "num primeiro disco é tudo mais espontâneo mas também mais verde". A uma produção diferente correspondeu "uma exigência mais forte em termos musicais, o que acabou por colocar outro peso na forma de cantar, outra dimensão". Enquanto o primeiro disco pretendia dizer "isto é o que eu sou, e como transporto neste momento isto que eu sou para um disco", em "Esta Voz que me Atravessa" a diferença começa logo pelo menor número de composições assinadas em nome próprio, sinal de um ano de trabalho "em cheio" mas também de uma vontade de não escrever por escrever. "Não quero escrever de propósito para poder dizer que as coisas são minhas". Em "Esta Voz que me Atravessa"  Mafalda Arnauth encontrou quem as dissesse da mesma forma que ela as teria dito: Hélia Correia, Amélia Muge, Mário Rainho, Hélder Moutinho e...Fausto, presente no tema "Lusitana. Ela mesmo diz a tradição de Alfredo Marceneiro, em "Até logo, meu amor".

Cumplicidades. Amélia e Mafalda encontraram-se através de Camané, para quem a autora de "Taco a Taco" escrevera uma composição. Logo aí a fadista se sentiu impelida a trabalhar com ela e o seu parceiro de há muito, José Martins. "Um e outro funcionaram como estudiosos", diz Mafalda, "preocupando-se em ver o que é o fado, em saber deste universo e, respeitando o tradicional, debruçando-se sobre as suas fronteiras".

"O que me impressionou acima de tudo na Amélia foi esse lado de ir ao fundo das coisas, além de ser uma pessoa com as emoções à flor da pele". As duas olharam-se e "descortinaram-se" uma à outra. Daí até se estabelecer uma empatia foi um ápice.

Respirações e outras "coisas básicas" como esta, além de pormenores mais subtis, como a forma de sentir e interpretar a música, e uma maior concentração na musicalidade e significado dos poemas - "por vezes o facto de se ter na voz um bom instrumento, distrai da força dos poemas. Neste disco tive a preocupação de saborear melhor os seus sentidos" - sofreram alterações. Mas a audição de "Esta Voz que me Atravessa" prova que a colaboração foi acertada.

Ricardo Rocha, na guitarra portuguesa, José Elmiro Nunes, na guitarra de fado, e Paulo Paz, no contrabaixo, acompanham Mafalda Arnauth. Nada de inovações instrumentais, nenhum violino, nem um piano para amostra, apenas os intrumentos tradicionais do fado. Por aqui, pelo fado, as mudanças terão que surgir sempre de dentro, da capacidade da personalidade de quem canta se moldar às curvas do tempo. E é assim que Mafalda Arnauth acha que deve ser. A contestação na contra-corrente do escândalo e do folclore que outros fazem gala em exibir. Mafalda, a contestatária. Com classe e devoção.

Novo fado? E é assim que outras das vozes femininas do fado surgidas nos últimos tempos - para além de Mafalda Arnauth, também Cristina Branco, Ana Sofia Varela, Joana Amendoeira ou Katia Guerreiro - têm procedido, deste modo garantindo, sem cair no paradoxo, a renovação deste género musical que apenas o é enquanto existir uma certa forma de ser-se e sentir-se português. Não há "novo fado", mas novas (e novos) fadistas, outras formas, renovadas mas sempre ancoradas na saudade (sem ela o fado é sombra sem corpo), de o (re)descobrir e cantar.

Todas elas insuflaram na alma do fado a sua própria alma. Vozes e sensibilidades diferentes a explodirem num céu que, depois da morte de Amália, se desanuviou, mostrando quão imenso era e ocupado estava. Porque Amália era toda ela o céu. A estrela que ocupava todo o espaço e tudo ofuscava. Extinta essa luz, outras lentamente se foram e vão acendendo e é o seu brilho que cada vez mais se vai firmando. "Novas Amálias" não há nem poderá haver. E o fado está agora mais dividido.

"Com o desaparecimento real de Amália Rodrigues as pessoas deram-se conta que estavam a perder as suas raízes. E aconteceu a descoberta que se lá fora lhe prestavam tanta atenção era porque algo lhes estava a escapar. Após a sua morte apareceram boas vozes, mas só o tempo definirá a sua qualidade ou não, consoante a sua receptividade por parte do público".

Porque os tempos agora são outros e as distâncias maiores, torna-se difícil, senão impossível, juntar estas vozes num qualquer movimento ou estética organizada. Hoje , Mafalda Arnauth ,Cristina Branco ou Ana Sofia Varela são mais facilmente divulgadas e ouvidas no estrangeiro do que qualquer fadista nas décadas de Amália. "Não é como antigamente, quando as fadistas se juntavam nas casas de fado".

Mas talvez o mais importante não seja essa partilha. E aquilo que une, afinal, todas estas vozes que reivindicam o futuro do fado pode ser sintetizado nas palavras de Mafalda Arnauth: "Embora cada uma trabalhe na sua própria realidade, toda a gente tem a preocupação de fazer sempre melhor".

 

 

Expresso, CARTAZ, 3-3-2001

 

Ínfimas deslocações

 Com o seu segundo disco, Mafalda Arnauth reserva definitivamente o seu lugar no fado

 Entrevista de João Lisboa

 

Dois anos depois do álbum de estreia, com Esta Voz que Me Atravessa, Mafalda Arnauth reserva definitivamente o seu lugar no panorama contemporâneo da nova geração do fado. Produzido por Amélia Muge e António José Martins, este é outro álbum da estirpe que tem vindo a afirmar-se onde, através de pequenas divergências e ínfimas deslocações, o fado, sem nunca perder a sua raiz, renova o vocabulário e enriquece o reportório com um conjunto de temas e notáveis interpretações que, na era pós-Amália, é justamente aquilo de que mais precisa.

Com o álbum de estreia, adquiriste determinado tipo de experiência, decisiva para a forma como concebeste este novo trabalho?

O primeiro álbum foi digerido com tal intensidade que me obrigou a escutá-lo sucessivamente e percebê-lo cada vez melhor, com sentido crítico, mas também com carinho. Pretendia que ele fosse espontâneo e foi, mas também consegui compreender as coisas que estariam menos bem. Neste disco procurei manter essa ideia de autenticidade, dos sentidos à flor da pele. O que senti que gostaria de trabalhar mais foi a parte musical. Daí ter apostado em pessoas que sabia iriam gerir bem o talento dos músicos. No primeiro disco isso ficou a cargo de cada músico. Desta vez foi um verdadeiro trabalho de equipa. Cada um trouxe a sua bagagem - o Ricardo Rocha, por exemplo, é uma pessoa impossível de limitar - mas foi importante existir alguém de fora (a Amélia Muge e o Zé Martins, que foram responsáveis pela produção e direcção musical e artística) capaz de dizer «isto fica melhor», «isto está fora do contexto» e os próprios músicos sentiram que alguém estava a prestar atenção especial ao seu trabalho.

Nessa colaboração com a Amélia e o Zé Martins, como decorreu todo o processo de escrita e selecção do reportório?

A primeira escolha passou quase sempre pela parte poética. A Amélia sentiu que, ao ser convidada, faria sentido reflectirmos um bocadinho sobre as fronteiras do fado. Porque, sendo ela uma pessoa que nunca teve realmente contacto com o «mundo do fado», mas sendo estudiosa, fez um trabalho notável de investigação. Na construção das letras percebi que ela procurou não me «formatar». Partiu das minhas ideias e da minha concepção do texto, mas foi abrindo algumas luzes em termos de construção. Talvez existam menos coisas minhas mas sinto-me muito mais satisfeita com as que ficaram. Quanto à parte musical, se o primeiro disco era a minha apresentação, este vai mais fundo nas tais fronteiras entre fado e vários tipos musicais.

Tanto ao nível do trabalho dos músicos como na própria construção dos temas e dos arranjos este disco é muito mais rico do que o primeiro.

Não tenho a menor dúvida. Sinto que dei um grande passo em frente, embora tenha sempre um grande carinho pelo primeiro, devido aquela forma desprendida de me apresentar.

Em ambos os discos foste buscar, como produtores - no primeiro o João Gil, neste a Amélia Muge -, pessoas que não provêm da tradição do fado. Estavas à procura de um olhar distanciado sobre esse universo musical?

Tem muito a ver com isso, mas foram duas situações distintas. O João foi-me apresentado numa altura em que não fazia ideia de quem me poderia produzir. Com a Amélia tive a intuição - principalmente a partir daquele tema ddeela, «À Janela», no disco do Camané - de que era alguém a quem o fado despertava muito a atenção, influenciada (talvez mais do que o João Gil) pela raiz tradicional da música portuguesa. E, sobretudo, com uma grande vontade de conhecer mais sem os vícios dos «conhecedores» e com uma experiência musical e poética muito rica.

Isso pode criar alguma dificuldade, relativamente à aceitação por parte da «comunidade fadista» mais tradicional?

Não tenho sentido, nada, isso. São capazes de ficar um pouco assustados com temas que já no primeiro disco existiam, mas sentem que o fado está presente e que a fronteira tem sido sempre respeitada. Este disco poderá ser um bocadinho mais polémico, mas é um desafio que não me importo de aceitar quando tenho um músico como o Ricardo que já sai da forma tradicional de tocar e temas com os quais me identifico perfeitamente. Não quero nem posso limitar-me em termos de horizonte musical.

Nos últimos anos, sem que o idioma do fado tenha sido varrido por algum tufão, sente-se realmente que sopra uma aragem nova... Também és desta opinião?

Sou. E o mais importante é sentir que tudo isso tem sido feito de uma forma que não é chocante. Essa era a minha grande preocupação. Dificilmente alguém dirá que eu ou, por exemplo, o Camané, estamos a virar o fado ao contrário. O próprio percurso da Amália é recheado desse tipo de situações. Coisas que há trinta anos não eram consideradas fado, hoje, são clássicos, padrões, modelos que resistiram e se impuseram. Por outro lado, curiosamente, alguns dos fados mais marcantes são tradicionais: muita gente não sabe que o «Povo que Lavas no Rio» é o «Fado Vitória», ou que «Estranha Forma de Vida» é o «Fado Bailado».

Não tinha pensado em falar-te disto mas, de repente, lembrei-me da tua celebrada apresentação para Bill Clinton.

O convite foi uma coisa um bocado estranha. Ficámos meia hora a pensar «isto não está a acontecer...». Ainda por cima tínhamos um espectáculo marcado para esse dia. Mas acabámos por aceitar. O que é que se pode apresentar numa situação dessas? Sabia que tinha, no mínimo, de cumprimentar os presidentes. Lá fora, tinha estado a repetir interminavelmente «your excellency the President of the United States, Mr. Bill Clinton» e, quando entrei, aquilo saiu. Procurei fazer uma coisa o mais diversa possível. Mas foi um bocado irreal. Quando foi a sessão de cumprimentos, lembro-me que eu só queria sair dali. Mas não houve o menor problema.

O Clinton portou-se como um cavalheiro...

Ele tinha um «staff» composto quase só por mulheres que o apaparicam de todas as maneiras e que determinam tudo o que acontece. É praticamente impossível alguém sentir-se ali exposto de alguma maneira.

Entre o primeiro disco e este, aconteceu a morte de Amália. Daí que estejamos a viver agora, de facto, a era-pós Amália.

Mais do que nunca, começam a surgir pessoas - até fora do fado, como o João Monge, por exemplo - a compor muito bem, que conseguem usar essa linguagem e chegar ao público. Não vamos pensar em substituições. Os tempos e os momentos são outros e é preciso que não se perca a identidade de quem pode aparecer. Isso obriga-nos, evidentemente, a descobrir um reportório próprio. Mais do que nunca, é necessário que se compreenda que aquele lugar é daquela grande senhora e todas as pessoas que vierem serão outras pessoas.

 

 

"Até aos 18 anos eu sabia lá o que era o fado"

Nuno Galopim

 

  Depois de uma longa sessão fotográfica, ao sol de uma tarde de Verão, eu e a Mafalda rumámos a um restaurante chinês, para um encontro de palavras em português ao sabor de "chop suoy" de lulas e de um inevitável pato à Pequim. Arroz "chau chau" a acompanhar. Na recta final da apetitosa conversa, o dono do restaurante fazia questão de dar uso ao seu novo brinquedo, com uma sonora e longa sessão de "karaoke". Naturalmente, em chinês.  


Acha que o fado é, necessariamente, a "desgraça"?
Definitivamente não sou assim, e talvez venha daí a empatia que vou sentido que as pessoas têm comigo. Não consigo ser fatalista, não quero viver da tal desgraça. E começo a transmitir isso. Há um realismo nas coisas com o qual as pessoas também se vão identificando. Se tenho a referência de problemas, disto e daquilo, depois também tenho a referência de como os superar e de bons momentos. Não consigo ser assim na minha vida e por isso o fado que eu canto, e a forma como comunico com as pessoas, não pode ser nunca só desgraça.

O fado, enquanto celebração da vida, é também optimista...
Absolutamente! O fado é emoção. Podem dizer que é destino... A grande diferença é reconhecer se está traçado ou não está.

Aprende-se a ser fadista ou essa é uma característica que tem de nascer com a pessoa?
Isso coloca-me várias questões. A ideia de fadista passa por várias coisas e eu conheço fadistas que não cantam. A capacidade que têm de sentir, de ouvir, de defender, de conhecer, para mim faz deles fadistas. Fadista, como uma pessoa que vive, que assume a emoção na sua vida. Por isso não associo tanto ao nascer com, mas mais ao assumir-se e aceitar-se como. Agora uma coisa é real: há aquela pessoa que canta que, sem se saber porquê, arrepia. E logo ao lado pode haver uma outra pessoa com excelente voz e uma presença fantástica que, se calhar, passa despercebida. Eu, até aos 18 anos, sabia lá o que era fado...

Nem cresceu em ambiente fadista...
Não.

O que ouvia em casa quando era pequena?
Sempre ouvi as coisas mais diversas, também porque tinha como referência o meu irmão, que passou por aquele período do rock. Em pequena cantava muito uma música da Mara Abrantes e ouvia o José Barata Moura. Uma grande misturada... Vivi muito com a música brasileira, a música clássica, a música popular portuguesa, aqui porque tinha família no interior. O que não ouvia mesmo era fado e heavy metal.

E o que era para si o fado, nessa fase em que a rebeldia característica do adolescente não perdoa muito a ideia de tradição?
Nunca tive uma imagem de "seca" porque nunca fui forçada a ouvir fado. Sempre foi uma coisa muito desconhecida, com um bocadinho de mistério que nunca tive muita curiosidade em conhecer. Mas foi importante não ter sido forçada e que a história do fado me tenha sido passada de uma forma saudável. Lembro-me que havia sempre um "peso" associado e a tal piada na forma de cantar. Em minha casa não se ouvia fado, mas havia respeito. E nunca fui a uma casa de fados até entrar para a faculdade.

Que tipo de imagem Amália lhe sugeria nessa altura?
Era a grande figura que eu não sabia porquê. Acho que só para o fim da sua carreira se fizeram reportagens sérias e só aí comecei a ganhar curiosidade. E isso coincidiu com o momento em que comecei a cantar. A primeira cassete que ouvi foi da Amália e foi uma coisa tremenda. Se hoje me perguntam se é a minha referência, só não digo que sim porque passou a ser referência de uma coisa muito maior.

Que grande ensinamento colheu em Amália?
A grande mensagem que uma mulher como Amália nos pode dar é a de nos procurarmos a nós mesmos. A procurarmos a nossa identidade.

Como coloca quem ama nos seus fados?
Sou capaz de escrever um poema inspirado em alguém que me é muito querido. Mas também sou capaz, como figura pública, de defender o mais possível a minha privacidade. Não escondo quem sou e o que vivo, mas tenho a liberdade de omitir.

Disse uma vez que não seria capaz de cantar um fado sobre touradas...
Não sou capaz de cantar um fado sobre touros, assim como não sou capaz de cantar o fado de uma mulher que, desgraçadamente, o homem abandonou. São palavras que não têm nada a ver comigo. Não sou extremista e não digo que não gosto das coisas com a intenção de ir lá meter uma bomba. Não gosto de tourada nem acredito em quem diz que se não fossem as touradas os touros não existiam.

Como convive com o universo marialva que está associado a alguns espaços do fado?
Por natureza, mesmo em tempo de escola, sempre consegui ter respeito e admiração das pessoas por mim, mas nunca me forcei a estar em grupos. Hoje isso é uma coisa que assumo, com os riscos inerentes, numa altura em que as coisas acontecem por grupos, por lobbies. Devem ser muito poucas as situações em que fui vitima de machismo, de discriminação por ser mulher. Tenho uma personalidade muito vincada, e de alguma forma isso consegue ser interessante para os tais marialvas que se cruzam comigo. E tendo a personalidade que tenho, é impossível não assumir a minha referência de quase líder. O espectáculo passa por mim, o disco passa por mim. E nunca me sujeito a essa noção machista.

Gosta das ideias de desafio e polémica?
Desafio, sim. A polémica, quando acontece, não é algo que pretenda provocar. Se não uso um xaile, não é para chocar as pessoas e ir contra os costumes. Não uso porque não gosto, não me é natural. A polémica é algo que tem um reflexo nos outros e, se estamos a pensar em polémica, já estamos condicionados. O desafio é algo que coloco a mim própria.

Não costuma assumir posições em questões que lhe são exteriores...
Tem acontecido pedirem-me opiniões sobre coisas das quais julgo que não devo dar a opinião sem ter contacto com as pessoas em causa. As pessoas usam muito o que fazem um bocado como um jogo de poder. E eu não quero tirar partido disso.

E como se sente junto dos poderosos. Por exemplo, quando cantou frente a Bill Clinton?
Na pequenez que sentimos no momento tem de haver uma mistura de pequenez e de consciência pessoal que é o imaginar que, se estou aqui, é porque tenho valor. A atitude não é a de sentir orgulho ou de prepotência, mas é ter a consciência das capacidades que se tem. E, depois, uma grande humildade, porque não sabemos o que nos vai acontecer no momento em que abrirmos a boca. Em termos práticos foi uma honra tremenda. E não quero dizer que não teve repercussões naquilo que faço, porque teve! Sei da importância que as coisas têm, mas não quero fazer disso a tal condicionante. O mais importante neste percurso é a minha identidade manter-se íntegra e saber quem sou e gostar do que faço. E não permitir que nem medos nem orgulhos exacerbados me alterem muito. Senão vou perder a verdade daquilo que quero fazer.

O que é que, em si, mais pesou nesse momento?
A noção mais forte que tinha não era o peso de estar a cantar para o Bill Clinton, mas o facto de estar a representar o meu país, o fado e toda a nossa cultura naqueles 20 minutos. O Bill Clinton duvide que o volte a ver na minha vida. Mas os olhos mais importantes que ali estavam sobre mim eram os do meu país. O Clinton ia-se embora, mas eu ia ficar.

Se a convidassem para cantar em campanhas eleitorais, aceitaria?
Fui convidada para participar em campanhas e a minha dificuldade é fazer o político entender que não tenho nada objectivamente contra aquela pessoa. Gostaria de ser a pessoa mais alheada das questões do poder, da religião. O que faço é para as pessoas em geral.

Não se quer condicionar a um rumo?
Já fui várias vezes cantar ao Palácio das Necessidades, mas também já fui à Festa do Avante! O que ninguém ouvirá nunca é o meu apoio a esta ou aquela pessoa. A minha liberdade enquanto figura pública é importante. Sinto a necessidade de me manter imparcial. Eu posso ser figura pública, mas o que faço é música.

Entre o seu público há uma multidão de gente nova. É um cenário diferente daquele que viveu na sua adolescência.
Na minha adolescência não havia uma pessoa jovem a cantar fado que, quando chegasse à televisão, me fizesse identificar com ela. Há quem diga que sou fadista... "mas não muito"...

É-lhe importante o reconhecimento da geração mais velha?
É natural. Aceitaram-me no respeito. Têm à vontade para dizer o que gostam e o que não gostam.

Está a acabar o curso de Veterinária?
Sim, mas este deve ser o ano menos responsável da minha carreira de estudante. Tive de tomar uma opção em termos de saúde mental. Em Setembro fiz um exame e levei uns bons meses a recuperar. Neste momento o disco saiu e não o posso abandonar.

Mas tem vontade de o acabar?
Tenho, agora a questão de exercer ou não... Não seria capaz de exercer numa clínica. Preferia ir para o campo.

A ideia de ser veterinária de província atrai-a mais?
A província atrai-me mais que a cidade.

Diário de Notícias, 8-7-2001

 

                                

Ser Fadista É Entregar-se à Vida
PÚBLICO     Y    
Sexta-feira, 23 de Maio de 2003

Fernando Magalhães

Depois de "Mafalda Arnauth", produzido por João Gil, e "Esta Voz que me Atravessa", produzido por Amélia Muge, "Encantamento" tem auto-produção da fadista. O resultado é o seu melhor álbum de sempre. Pelos temas e pela voz. A fadista tomou quase tudo em mãos. "Não quis deixar nada em mãos alheias, decido assumir toda a responsabilidade. A parceria maior que tenho neste disco é o Luís Oliveira, que se encarregou da direcção musical e dos arranjos. Neste disco as letras voltam a ser minhas, as ideias são minhas...E a responsabilidade de algo que esteja menos bem é também minha. Digamos que a minha personalidade se tornou mais vincada. O disco resulta de um crescimento e de uma auto-descoberta tão grande que não seria justo pôr outras pessoas a assumirem a responsabilidade pelas minhas decisões".

Responsabilidade que Arnauth assume como fruto de uma segurança que antes não se manifestara: "Uma segurança que adveio do prazer que me deu. Sou uma mistura de racional e emocional, e o racional consegue fazer uma avaliação do trabalho. O emocional voltou a ter espaço para se expressar, coisa que no segundo disco não aconteceu, por cansaço e por estar a trabalhar com pessoas com muito mais experiência do que eu, o que gerou em mim um certo respeito".

Algo mudou entretanto, como resultado desse processo de auto-descoberta. Mafalda centrou as atenções no corpo, forçou-o a disciplinar-se. Três factores contribuíram para essa mudança: "O primeiro factor vital foi a saúde. O templo onde tudo isto acontece, o meu corpo. Precisava de uma paragem no final de 2001, todo o trabalho de estrada tinha sido desgastante. O segundo factor foi ter deixado de fumar. De repente pude reencontrar a minha voz e redescobrir novas possibilidades em termos de interpretação. Quando tomamos conta do nosso corpo ficamos com muito mais força para tudo o que vem a seguir. Um terceiro factor foi ter voltado a compor".

O fado é sereno

Desprende-se da audição de "Encantamento" uma sensação de serenidade. Sem rodeios: dos três álbuns já gravados pela fadista, "Encantamento" é aquele em que Mafalda canta melhor, algo que nasce "da respiração, da tal história de ter acabado com o tabaco". A fadista também teve aulas de canto, "de colocação de voz", que a ajudaram, sobretudo a tranquilizar-se. "Não me formataram a voz mas deram-me saúde ao instrumento. Sinto que está muito bem. O sopro, a respiração é tão importante a falar como a cantar, o facto de eu conseguir fazer essa gestão do ar, põe naturalmente tudo no sítio, deixando outra margem para a inspiração. Antes era uma das minhas dificuldades. Só a insegurança, a ansiedade, só isso já aperta o ar. Quando não temos que nos preocupar com isso, a atenção passa imediatamente para outro lado".

O trabalho de estúdio teve a sua quota-parte nestes resultados. Mafalda teve o estúdio totalmente à sua disposição. "O Luís Oliveira e o José António Pedro, que faz o som do disco, formam uma sociedade e têm os dois um estúdio que, além de ser muito caseiro, é topo de gama ao nível técnico. Os músicos tiveram dois meses para gravar, mais um para as misturas". Sobrou tempo. Não houve pressões. "A editora teve alguma dificuldade em perceber como é que está tanto tempo a fazer um disco. Para a maior parte das pessoas é uma loucura, ter um estúdio só para nós".

Preocupações que não são vulgares nos fadistas vulgares mas que Mafalda Arnauth considera essenciais. Funcionou uma filosofia de vida que passa pela aprendizagem constante. "Enquanto estudei Veterinária tive uma cadeira, de Toxicologia, que me abriu os olhos para o ser humano hoje e como era há 30 anos atrás. Em 30 anos, os nossos corpos deixaram de ser as forças da natureza que eram. Não digo que toda a gente seja assim, mas eu pago mais caro do que as outras pessoas. Apesar de ter um corpo forte, com personalidade, sinto que sou frágil. O ritmo da vida é hoje superior, o stress que apanhamos, a comida, tudo nos fragiliza. Tive que encontrar uma disciplina. É claro que há outras pessoas que continuam a ser forças da Natureza, por mais que façam as maiores desgraças".

Há quem diga que quanto maiores são os excessos melhor se canta o fado. Para Mafalda, não. "Até há quem diga que eu, neste momento, tenho voz a mais...", diz a sorrir. Como é isso? "Voz a mais, por se sentir menos esforço a cantar, sem aquela necessidade de sofrimento que ainda está um bocadinho inerente ao canto". Em "Encantamento" sente-se o prazer. Incluindo "o prazer que se pode tirar das próprias dificuldades". "Porque o percurso deste disco é extremamente doloroso, fruto do tal crescimento", diz a fadista. "Tentei fazer algo feliz de um processo que foi doloroso". Ser fadista é, então, uma "filosofia de vida", uma "entrega à vida". Filosofia que pratica, "embora não nos mesmos núcleos nem nos mesmos ambientes" que fizeram o fado no passado. "Ser fadista é isso, é a pessoa que vive, que absorve uma quantidade de experiências e que as transporta para o canto. O que eu absorvo é que é diferente do que absorve a maior parte das pessoas. Continuo a sentir um canto melancólico. Hoje já consigo ver nas fadistas da minha geração as suas diferenças". E vê-as assim: Cristina Branco, "cada vez mais uma fadista que se alimenta da poesia", Mariza, a "fadista de faísca, de garra", Mísia, "uma fadista cosmopolita". Cada uma delas "a absorver várias áreas do mundo".

Matar saudades

Mafalda Arnauth continua a frequentar as casas de fado. Para "matar saudades". Dá razão a Argentina Santos que ainda há pouco tempo dizia ao PÚBLICO que é impossível aos novos fazer carreira sem passar pelas casas de fado. "Passei por lá e continuo a sentir a necessidade de ir, mas não no mesmo formato. Se já não vou com a mesma frequência é porque foi lá que aprendi, nem tudo coisas boas. Mas a minha natureza não se enquadra numa casa fechada. Argentina Santos tem o seu trono, o seu lugar de culto. Se um dia tiver a minha casa de fados, naturalmente que também terei que estar lá. Mas hoje prefiro ir cantar a uma casa de fado e sentir gozo do que estar lá uma noite inteira. Até porque nós, da nova geração, tornámo-nos umas "pequenas estrelas". Numa casa de fado onde está alguém a cantar diariamente, com uma entrega total, não tenho coragem de chegar lá, e por ter algum estatuto, chegar, cantar cinco ou seis fados e ir para casa. Estaria a obrigar alguém, provavelmente muito mais cansado do que eu, a ter que cantar outra vez. É um respeito que continuo a ter".

O problema dos títulos

"Encantamento" termina com um "Fado Arnauth". A própria não receia ser acusada de pretensiosismo e explica a razão de ser do título: "Esse título existe porque estive durante dois ou três meses a tentar dar títulos às músicas o que, com a SPA [Sociedade Portuguesa de Autores], é impossível. Têm sempre registado um título igual! Por exemplo, tinha 'Na palma da minha mão', mas não dava, tentei cinco ou seis títulos, acabou por ter que ser 'Da palma da minha mão'. O 'Fado Arnauth' foi 'Feitiço', o 'Sem limite' não pôde ser 'Sem limites', 'Bendito fado' teve que ficar 'Bendito fado, bendita gente', 'É sempre cedo" chamava-se 'Acorda coração'... Impressionante. O "Fado Arnauth" foi um relâmpago, nascido da frustração."

E "Encantamento", foi também assim? "Esse foi um encantamento total. Um cantamento, encantamento que vem do canto. Um encantamento com a vida que passa. Porque é que, de repente, me sinto uma pessoa saudável? Há quem diga que o desapego à vida, um instinto anti-vida, é necessário. Eu penso precisamente o contrário, acho que este encantamento vem de cantar à vida, da superação do dia-a-dia. A minha vida será tanto mais rica quanto mais gostar até das coisas menos boas. Embora hoje este amor pela vida esteja algo 'démodé'...Já esteve mais na moda ser-se feliz."

Também a síndrome 'Nova Amália' esteve mais na moda. Hoje "as novas fadistas que estão a aparecer têm o cuidado de ter particularides próprias, uma personalidade marcada". Mafalda Arnauth até exagera um pouco, a ponto de continuar sem gravar um único fado de Amália. Lá virá o dia. "Hei-de fazer isso! Mas quando o fizer, não serão só fados dela. Será como uma prenda que darei a mim própria".

"Encantamento" é composto por 14 temas, com música de Luís Oliveira e poemas de Mafalda Arnauth, à excepção de "As fontes", de Sophia de Mello Breyner, "Cavalo à solta", com letra de Fernando Tordo, e "No teu poema", com versos de José Luís Tinoco. Acompanham a fadista José Elmiro Nunes (guitarra portuguesa), Luís Oliveira (guitarra clássica) e João Penedo (contrabaixo). Os convidados são João Ferreira Rosa, em "Da palma da minha mão", e a cantora de jazz Mónica Ferraz, em "Ó voz da minha alma".

 

 

   

 

DN mais

 

   

Diário de Notícias, DN mais, 14 de Junho de 2003

 

 

O DISCO

Alinhemos todas as fadistas surgidas nos últimos cinco anos e coloquemos a questão: o que é que as distingue? A resposta óbvia seria “a voz”. Mas vozes, como chapéus, há muitas. Todas as novas fadistas têm boa voz, e algumas (Mariza, Cristina Branco) têm mesmo uma voz excelente. Na verdade, a diferença não está na voz – está na cabeça; está em saber até que ponto os discos que vão sendo lançados marcam a diferença e têm em si as sementes do futuro. E é neste ponto que o álbum de Mafalda Arnauth, Encantamento, se afasta de boa parte da concorrência. Mafalda, que foi a primeira das jovens fadistas a alcançar visibilidade pública, puxou dos galões e não se deixou diluir na avalanche de novas cantoras, apostando num disco parcialmente composto e totalmente produzido por si, e, mais do que isso, num disco com uma visão inovadora do fado. Alguns poderão achar que essa inovação é feita à custa de “facilidades”: ao investir no fado-canção em detrimento do fado tradicional, Mafalda ganharia em melodia o que se perderia em sobriedade. Nada disso. Este desfrisar do fado e a sua aproximação à música ligeira é feita com tal alegria, bom gosto e boa voz que é impossível não partilhar o entusiasmo. Imperdível.

J.M.T.

 

 
 

 

ESTA ALEGRIA QUE A ATRAVESSA

João Miguel Tavares

 

São muitas as vozes do novo fado, mas nem todas se equivalem. Ao terceiro disco, “Encantamento”, Mafalda Arnauth puxa dos galões e assina o melhor álbum da sua carreira. Assumindo boa parte das composições e toda a produção do disco, a jovem fadista assina um trabalho de referência. Encantatório.

A sua voz começou a fazer-se ouvir há pouco mais de quatro anos, mas perante a evolução do novo fado Mafalda Arnauth faz hoje figura de veterana – e este Encantamento é, de facto, o disco da maturidade. Mafalda está cantar melhor do que nunca e puxou para si a responsabilidade de produzir o álbum. Fomos à procura do segredo de tanto empenho e felicidade.

 

A sua voz está muito alegre em Encantamento. A que é que se deve tão boa disposição?

Há uma sensação de estar bem com a vida, de paixão generalizada, que tem vindo a crescer. É um sentimento um bocadinho démodé, mas no último ano as coisas têm saído da maneira que eu queria, e este disco é o culminar disso mesmo. Era um trabalho de grande responsabilidade, porque se os resultados não fossem bons, corria o risco de a minha carreira se desvanecer um pouco, mas o álbum nasceu de forma tão natural que eu acabei por nem sequer sentir essa pressão – quase todas as composições nasceram no espaço de um mês.

Essa alegria torna-se tanto mais evidente quanto no seu último disco, Esta voz que me atravessa, parecia um pouco cansada.

Sim, admito isso, mas os dois discos anteriores foram vitais na concepção deste. O cansaço do segundo disco deveu-se também a uma grande exigência que culminou em Encantamento. Foi uma peça de aprendizagem fundamental. Para além disso, ouvir aquela voz e ouvir a minha voz de hoje deixa-me muito feliz, porque sinto que evoluí. Tive aulas de colocação de voz, que passaram muito mais pela parte física – por um trabalho de respiração e de postura – do que pelo aparelho vocal. Antes, por deficiências de respiração, chegava por vezes a ficar tonta nos concertos, devido a hiperventilação. Lembro-me de ler um artigo de um cantor onde ele dizia que o corpo é um templo: se não for cuidado, a oração é muito menos elevada. Hoje em dia sei que preciso de momentos de relaxamento e de meditação.

Não se meteu no ioga…

Meti. Mas, como em tudo, não tenho tempo para manter a assiduidade. Também larguei o tabaco, o que foi fundamental. Fez parte de um trabalho interior de reconstrução. Não acho definitivamente que a arte tenha de ser fruto da desgraça. Se eu gosto de cantar a vida, então tenho de ter uma vida boa para cantar. Pelo menos, tenho de lutar por ela.

Também já lá vai o tempo do fadista sofredor, crucificado pela vida.

Sim, isso nunca teve nada a ver comigo. Posso cantar um fado triste, porque em determinado momento preciso desse exorcismo, mas para mim faz muito mais sentido cantar a luz ao fundo do túnel. Posso falar do percurso, mas se eu estou a ver a luz, se a acho belíssima, por que hei-de continuar a chover no molhado?

Numa entrevista recente ao Público afirmou, no entanto. que neste disco tinha tentado “fazer algo feliz de um processo que foi doloroso”. Que dores foram essas?

Por vezes temos muita fé num determinado projecto mas, por alguma razão, não somos capazes de passar essa fé às pessoas que nele intervêm. As dores são essas. Quando estava a fazer Encantamento, eu tinha a certeza que ia ficar muito feliz com o resultado final , mas houve momentos em que tive a sensação de que esse entusiasmo não era partilhado por toda a gente. O período de pré-produção, em que não havia nada de palpável, foi um pouco complicado – mais uma vez optei por entregar a direcção artística a uma pessoa de fora do fado, neste caso o Luís Oliveira [compositor, por exemplo, do êxito Jardins Proibidos] – e só quando começaram a aparecer os primeiros temas é que o optimismo regressou e as ligações se fortaleceram. O comboio teve de ser puxado por mim, e foi por isso que fui obrigada a assumir a produção do disco.

Não estava decidido desde o início?

No início era para ser uma co-produção entre mim e o Luís Oliveira. O assumir a produção total também foi doloroso, porque eu tanto podia colher os frutos como pagar as falhas, mas nós resolvemos separar as águas, e ele ficou responsável apenas pela direcção musical  e pelos arranjos. Nós tínhamo-nos cruzado por causa um tema para uma novela, que resultou muito bem. Percebemos logo aí que éramos capazes de puxar um pelo outro – ele tem muita música nos ouvidos e uma grande capacidade para compor temas “orelhudos”, que chegam às pessoas, sem serem vulgares (o tema que abre o disco, As Fontes, foi feito em meia hora), e eu sentia falta dessa música melodiosa. Depois, o Luís tem o seu próprio estúdio, com o José António Pedro [técnico de som], que colocou à nossa disposição durante três meses, e isso foi vital. A maior parte das pessoas achava que era tempo demais, e que três meses convidavam à divagação, mas foi uma das chaves do disco.

Gostou de produzir o disco?

Adorei.

Ou seja, gostou de mandar.

Sim, sim. Foi um óptimo teste à minha insegurança. Quer se queira, quer não, são quatro ou cinco homens, mais uma editora, mais um agente, mais um manager… e há uma decisão final, que não é consensual, que tem de ser tomada por mim. Isso enriqueceu-me muito, tanto mais que revelei a mim próprio capacidades e visões que desconhecia ter.

Também é responsável, com Luís Oliveira, pela maior parte dos temas do disco, optando por uma espécie de fado-canção em detrimento dos fados tradicionais. Porquê essa opção?

Porque esta começa definitivamente a ser a minha visão dó fado – o meu fado, se assim posso dizer. O que eu não queria era cair na leviandade de fazer um fado já cheio de roupagens diferentes e continuar a insistir que aquilo era fado tradicional. Isto não é fado tradicional, de facto. Este disco tem as melodias que eu precisava – as pessoas quando escutarem vão poder dizer “isto é a Mafalda Arnauth”, e isso é importante para mim.

O último tema do disco chama-se exactamente Fado Arnauth, e a razão oficial tem a ver com as suas dificuldades em registar as novas canções na Sociedade Portuguesa de Autores. Mas, segundo percebo, é disso que anda à procura – de um fado só seu.

Se dou o nome de Fado Arnauth a um tema, isso é uma forma de definir o meu campo. O último verso desse fado diz “eu vivo do meu jeito”, e é realmente assim. Tenho a consciência de que vivemos em grupo, e não me quero destacar enquanto individualidade como se estivesse sozinha no mundo. Mas admito que, se não há ainda un fado Arnauth, há pelo menos uma mensagem minha, que quero fazer passar.

Que mensagem é essa?

Aquela de que já falámos: não quero na minha voz a tristeza e a amargura tradicionais. Eu tenho vestígios de dor na voz – uma região de que fujo muito, porque se caio nela em concerto é realmente muito dolente e muito triste. Mas o meu canto é de superação. Já não canto para me mostrar, para me dar a conhecer. Se puder ajudar o dia-a-dia das pessoas – o que não é o mesmo que “passar uma mensagem” -, tenho muito prazer. Se uma mãe vem ter comigo e me diz que todas as noites adormece a sua filha com canções minhas, é evidente que isso me dá gozo. E é muito mais agradável do que as muitas crianças que vão aos meus concertos irem para a cama com a Rosa Enjeitada, que não tinha pão, nem mãe, nem nada.

Este seu disco tem uma outra curiosidade, que se prende com a aproximação à música ligeira, hoje em dia muito mal-amada. Canta No Teu Poema, de José Luís Tinoco, e Cavalo à Solta, de Fernando Tordo. Procurou recuperar uma fatia esquecida da música portuguesa?

Não. Há coisas de que muito simplesmente gosto: eu cantava o No Teu Poema em concerto há três ou quatro anos e deu-me o pânico que alguém se lembrasse de o gravar antes de mim. São composições de outras pessoas que me dão muito prazer cantar e aos quais penso ser capaz de dar um cunho pessoal. Tinha de pôr estas músicas no disco, tanto mais que há muito de música ligeira nas composições do Luís.

E em relação aos dois convidados do disco, João Ferreira Rosa e Mónica Ferraz. O João Ferreira Rosa já não gravava há muito, muito tempo…

Ele não é nada bicho de estúdio. Esteve lá um dia inteiro e não foi fácil segurá-lo. O João fez isto apenas pelo carinho que me tem e porque gostou da ideia. E apesar da sua idade, continua a ser tímido e inseguro – isso é muito bonito, tal como foi bonito escolher para cantar o verso de maior esperança do tema Da Palma da Minha Mão. Quanto à Mónica Ferraz, é uma voz vinda do universo do jazz que eu admirava, quer pela força. quer pelo empenho profissional. Houve gente que ficou um pouco surpreendida pela escolha, porque há ainda quem ache que pode ser “perigoso” colocar duas vozes femininas no mesmo disco, mas eu estava muito interessada em juntar uma voz do fado e uma voz do jazz, para ver tanto aquilo que aproxima como aquilo que afasta as duas linguagens.

Encantamento é um disco diferente do que se tem vindo a escutar no “novo fado”. Diante da avalanche de novos fadistas, sentiu alguma necessidade de se distinguir?

Não foi preciso fazer um esforço porque, à partida, penso que qualquer uma de nós tem a sua própria identidade: estamos cada vez mais definidas e diferentes. Eu apenas tinha de fazer este disco para me sentir feliz com a minha evolução. A única coisa que me incomoda é aquela ideia generalista de que se trabalha “em prol do fado”. O trabalho que se faz é apenas para revelar pessoas, personalidades. Por exemplo, perguntaram-me se o prémio que a Mariza ganhou era bom para o fado. Eu respondi que aquele prémio é mérito da Mariza e que o fado tinha contribuído muito pouco para isso. É uma questão de carisma, e vai ser o carisma a seleccionar as vozes do futuro.

Neste momento já se sente uma veterana do fado?

Sinto-me uma pessoa com algumas cartas dadas e que coloca muita honestidade no seu trabalho. Daqui para a frente podem gostar ou não gostar, mas vão saber quem sou. Este disco abriu as portas da minha maturidade. Entendo os meus tr~es primeiros álbuns como um ciclo – e o prazer desse ciclo já ninguém mo tira.

 

DNa n.º 466, 4 de Novembro de 2005

 

D I Á R I O

 

O quarto álbum de originais de Mafalda Arnauth pode ser entendido como uma espécie de concisa biografia em forma de disco. Mas biografando essencialmente a alma da fadista, humana multiplicidade de emoções, de estados de espírito, de sensações, de inspirações, de pensamentos. Cada tema deste Diário surge-nos como urna espécie de janela para os diversos mundos da cantora, janelas essas que parecem acesas por dentro, como se fosse de sua natureza irradiarem luz para o exterior, inundarem o mundo e os outros de uma dádiva cada vez mais inspirada, luminosa, autêntica. Talvez seja por isso que Mafalda canta em Por Onde Me Levar o Vento:

Eu quero abrir a cortina

Que me faz desde menina

Ter por sina o desalento.

 

E a verdade é que essa cortina, a existir hoje, está cada vez mais transparente. Mafalda Amauth perdeu definitivamente o medo de se dar em verdade, de nos cantar honestamente a sua história. É bem verdade o que canta em Audácia:

Já lá vai o fado escuro

Já lá vai o medo em muro .

 

 Mais do que qualquer um dos anteriores, este disco revela-se como espaço de eleição de um profundo, mas sempre elegante desnudamento da alma da fadista, nunca num sentido exibicionista mas sempre correspondendo a um exercício de autoconhecimento e vontade de dar aos outros os pequenos tesouros e iluminações espirituais que vai desvelando e encontrando dentro de si.

Este é também o disco das influências da fadista, das suas referências musicais, das suas fontes de inspiração, sendo Amália a fonte maior (aqui homenageada e evocada em Foi Deus). É também o disco onde Mafalda arrisca ampliar as fronteiras do fado, abrindo-o a uma certa aculturação. A presença do argentino Ramon Maschio traz uma espécie de sopro cálido mas também dolorido ao seu fado cada vez mais idiossincrático. Mas temos também as presenças da alma brasileira (em O Que tinha de Ser, tema de Vinicius/Jobim a que a fadista imprime um tom deliberadamente “latino”, lembrando até, a dada altura, a Lhasa de La Lhorona) e da alma francesa (numa versão de La Bohéme de Aznavour). Enfim, este Diário mostra-nos uma Mafalda com mais extensão vocal, arriscando “ser mais verdade”, mas apresentando-se, por vezes, algo instável e excessiva.  N.C.

 

QUERIDO DIÁRIO

 

Nuno Carvalho 

 

Mafalda Amauth regressa aos discos agora em nova editora, depois de ter posto um ponto final na sua relação com a EMI, onde editou três discos de originais e um best of. Diário é o seu novo álbum e mostra-nos uma Mafalda com uma enorme vontade de arriscar ser maior, de expor os seus pequenos segredos e iluminações, bem como os seus medos (sobretudo passados), e o supremo desejo de dar cor à sua vida. Percurso pelo mundo interior da fadista mas também pelas suas referências musicais, os seus mentores e fontes .de inspiração, Diário é provavelmente o disco mais ousado e livre de Mafalda, e também aquele onde a sua voz surge mais transbordante, solta, aberta, torrencial, e menos “controlada”. Um disco onde a fadista se afirma sem medo de existir.

 

 

 

Pode um disco ser um diário?

Para mim é quase a descoberta ideal, porque como todos os meus discos são tão recheados de mim, como autora, compositora, etc., e como a música é mais do que nunca o meu grande motor de vida (e para mim a música é fado, sobretudo, e é o meu motor porque é a forma de eu me exprimir, no fundo), e eu sempre fui uma pessoa de escrever diários, de repente pensei: porque não fazer um próximo disco que seja precisamente a revisão desse diário que eu fui vivendo, e porque não expressá-lo pelo meu veículo de eleição, que é a música. E aí é inevitável surgirem as outras pessoas que aparecem dentro do meu diário, e que é como se escrevessem nele também, é inevitável as influências desde sempre. Essa é a sorte de se fazer um best of numa altura em que se parece tão novo e que ainda não se fez nada. A grande sorte agora é pegarmos numa vida que ainda é curtinha, e que se resume mais ou menos bem em termos de diário, está tudo muito fresco. Temos no disco histórias de há quinze ou dez anos, e elas estão muito mais presentes, digo eu, do que daqui a cinquenta.

 

Apesar de muitos escritores terem publicado diários, para muitas pessoas anónimas o diário normalmente é um espaço confessional que não se partilha, O que é que a leva a mostrar, a expor, de algum modo, o seu?

Eu acho que é quase impraticável quando se decide entrar num palco e cantar emoções, não se chegar a uma altura em que para se ser coerente não faz sentido estarmos a reter coisas que nos podem definitivamente tornar mais ricos perante as pessoas e que podem ser úteis. Porque não há definitivamente um personagem de cada vez que eu vou para palco, sou mesmo eu, e são mesmo os meus sofrimentos, as minhas alegrias, etc.

 

Para si e para os outros...

Para mim e para os outros, definitivamente. Para mim este disco tem sido a grande terapia, de fechar coi­sas, de resolver definitivamente coisas. Há lá poemas que começaram em 98 e que foram finalizados agora. Eu situo-os em 98 porque aquela história é daquele momento, mas só agora é que terminaram e curiosamente, ao fazê-lo percebi que estava mais um assunto arrumado, mais uma coisa resolvida. E porque, no fundo, eu não vivo nem o fado nem a música como só uma forma de me realizar ou de me mostrar. Vivo-o intrinsecamente, na minha vida, na minha forma de estar. E daí que tenha chegado aquele momento em que quem quiser pegar nas minhas experiências e servir-se delas para seu proveito e para sua utilidade, é perfeito.

 

Isso é muito generoso da sua parte, pelo menos agora que se expõe. Mas poderá também ter havido, hipotetícamente, uma fase de maior fechamento na sua vida em que esteve a conhecer-se, a saber quem era, e agora sentiu a vontade de se libertar, de dar isso que descobriu em si aos outros?

Sim, sim. E há uma frase que me marcou muito quando. acabei de escrever, no final do ano passado, e que corresponde exactamente ao que entendo que a vida deve ser, apesar de eu achar que devemos preservar pequenos universos que temos: o segredo é que é sem segredo que damos cabo do medo. A forma como se vive em sociedade, hoje em dia, para mim é pavoroso eu sentir que dou um passo e tenho que medir de que forma é que eu faço, como é que eu vou vestida, como é que eu vou falar, como é que eu vou olhar porque tudo está sujeito à interpretação de cada’um. Ou seja, nós não olhamos as reacções das pessoas exactamente como elas as estão á fazer. Damos-lhes sempre uma interpretação, e isso já significa um certo segredo. Não há abertura, não, há transparência...

 

Em Portugal há um pouco aquela ideia de “com o meu vestido preto nunca me comprometo”...

Isso como simbologia pode ser perfeito. É uma certa neutralidade que não nos faz brilhar mas também não é incómoda. E às vezes temos muito essa necessidade. E eu preciso tanto, às vezes, de perceber o que vai na cabeça das outras pessoas, sobretudo das pessoas que me rodeiam, que penso que se eu preciso se calhar os outros também precisam de me decifrar, de me chegar aos segredos que eu estiver capaz de revelar. Porque aí o tal medo que mós temos de interagir vai diluir, vai diminuir, e então podemos passar para o ponto de desfrutar do que temos uns para os outros.

 

A Maria do tema Para Maria é uma presença interior, a figura materna, a Virgem Maria...

Maria e o tema em si, que é de 1992, já ganhou todas as dimensões possíveis e imaginárias ligadas à palavra Maria, Virgem Maria, Maria religiosidade, Maria fé, Maria feminino, que é talvez a vertente mais forte hoje em dia, que é a ideia do ventre, da criação, da origem de. Depois a Maria que também é símbolo de dúvida. Diz-se tantas vezes que a mulher é um ser dúbio, é recheada de armadilhas incompreensíveis. O tema da Maria que foi feito a primeira vez na altura do grupo de jovens era especificamente para um acto religioso, para uma religiosidade clara da Igreja Católica. E o que é certo é que eu com os anos fui deixando este tema de lado, e de cada vez que lá voltava redescobria-lhe outra dimensão, e daí, de repente, achar que ele podia ser actual, porque também lhe fiz alguns acrescentos e correcções e tornei-o um pouco mais universal. Agora o que é declarado no Para Maria é a tal transcendência, em que o símbolo de Maria, para mim, é o melhor símbolo dessa transcendência. É uma imagem que nos pode sempre significar tranquilidade, paz, protecção de mãe, o divino, o tal divino que nos ultrapassa e que nos abre o horizonte daquela ideia de físico, intelectual, mental, e de repente espiritual. E eu sou definitivamente isso tudo. Portanto, essa tinha que ser a porta de abertura para o disco. Não é forçado. É aquele tipo de situações em que pensamos: qual é o primeiro tema?, tem que ser este! Até pelo estado de alma que imprime nas pessoas. Um ateu diz-me imediatamente que a vibração da música em si lhe desperta uma concentração. E, no fundo, isso já é sintomático. Não estamos a limitar ninguém a um conceito, estamos simplesmente a dar a chavinha que vai abrir o resto, que passa por abrir um pouco o espírito, por se predispor.

 

Neste disco surge como parceiro Ramon Maschio. Como entra um argentino na sua música?

É uma história muito caricata. Ouvi-o um dia num concerto e fascinou-me a forma de ele tocar por ser de uma paixão e de urna qualidade que eu há muito tempo que andava à procura. E pensei: um dia vou cantar com este músico. Entretanto, o ano passado fui obrigada a ir descobrir um músico assim de repente, porque houve alguém que saiu, e foi um acto de loucura ir buscar, não um convidado mas uma pessoa que  iria aprender a tocar fado. Ele estava na Argentina na altura e eu escrevi-lhe e perguntei-lhe: queres tocar fado? Ou seja, não para vir tocar como tangueiro, como argentino, mas para vir tocar com a sua raça argentina. E ele respondeu imediatamente que sim. Preparou-se para a digressão da Holanda e fizemos mais de 20 concertos de fado. Quanto ao conceito do Ramon no disco, aí pude ir a uma coisa que eu queria há muitos anos, que era um guitarra clássica e conversar com a guitarra portuguesa. E eu gosto muito dessa sonoridade. É uma coisa com que há muito tempo sonhava, e o Ramon é a pessoa ideal para fazer isso. Só o gosto que ele tem no que está a fazer é uma lição impagável.

 

Além da Argentina há neste disco o Brasil com Vinicius e Tom Jobim e também a França de Aznavour. O que procura nesta abertura a outras culturas?

Não sei se vai ser uma coisa positiva, no sentido em que toda a gente pensa imediatamente que é para atingir outros mercados. Eu acho que quando se escolhem estes temas é sempre um perigo porque o próprio país para o qual estamos a trabalhar pode considerar isto uma leviandade. Eu comparo mais estes temas com o Foi Deus, que são temas claríssimos de influência na minha vida. É como se eles fizessem todo o sentido. O La Bohéme, e também O Que Tinha de Ser, é quase desde a minha adolescência um tema de referência. E que eu não percebia porquê, porque a letra e o conteúdo não tinha nada a ver comigo, eu nunca tinha vivido essa boémia. Mas é como se eu me identificasse imediatamente com aquilo. O Que Tinha de Ser é o meu tema de eleição de adolescência. São temas que são referências importantíssimas da minha vida.  O Foi Deus é a razão de ser de eu cantar fado, porque foi talvez o fado que eu mais fui obrigada a cantar, mas que eu tinha muito medo de gravar por ser tão emblemático nos primeiros anos da minha carreira. E agora acho que é finalmente o momento de fazer tudo junto. Ou seja, trazer as referências que me influenciaram e que me tomaram no que sou hoje em dia e prestar homenagem a essas referências. À Amália, de quem sempre fugi tanto, ao Aznavour, cujo timbre e interpretação têm qualquer coisa de muito especial, e a Maria Bethania. Eu só descobri depois que o tema era do Vinicius e do Tom Jobim. Primeiro influenciam-me as pessoas,  influenciam-me aqueles intérpretes que me marcaram muito. e depois a música brasileira é a minha companheira desde sempre. Eu acho que se há influência no meu fado vem mesmo daí. E a fusão é capaz de dar aquela sensação de jazz e blues,  quando no fundo acho que é muito mais a harmonia brasileira que também é carregada disso.

 

Disse que a ambição foi uma descoberta recente na sua vida. O que é que ambiciona realmente hoje?

Ambiciono conseguir fazer as coisas como eu acho que é possível fazê-las. Posso assumir claramente uma ambição de maior estabilidade, de poder ter, por exemplo, uma casa onde eu entre e não esteja preocupada porque aquela cortina é muito feia e não tenho dinheiro para mais. Esta ambição de luxo e de conforto nunca existiu um mim ou nunca foi assumida. E agora eu assumo-a porque acho que é tão bom nós podermos desfrutar de coisas boas. Mas é muito mais do que isso a ambição de que eu falo agora. É a de fazer as coisas como eu acho que é possível. Com o máximo de dedicação, com qualidade. Ambicionar fazer este disco obrigou-me a um trabalho que ninguém imagina! Fiz parte das misturas do disco, fiz horas intermináveis a ver as coisas todas, e isto só porque eu ambicionei fazer o melhor que eu posso. Durante muito anos escudava-me naquela coisa de o que vier está muito bem. E continua a estar, mas, pelo menos, eu posso desejar mais, até de mim própria. Não estar sempre num misto de preguiça e de defesa. Porque é um mecanismo de defesa que nós muitas vezes temos. E eu tinha muito isso quando fazia desporto, quando fazia mal desporto. Partia do princípio que não sabia jogar futebol, e então passava o jogo todo a ridicularizar-me e passava a ser o bobo da corte, em vez de me focar no jogo e ver de que forma é que até podia ser melhor. A ambição de ser melhor desenvolveu-me bastante.

 

Como concilia esta vontade em criar na primeira pessoa com o desejo ou necessidade em continuar a colaborar com outros?

 

Por acaso foi o João Miguel Tavares que me perguntou se eu não estava a caminhar para um dia fazer um disco totalmente sozinha, ou seja, tocava eu, captava, fazia a capa, fazia tudo sozinha, porque, pelos vistos, o percurso estava a ser esse. E o que é certo é que mais do que nunca, para este disco, há uma equipa muito maior de pessoas, porque quando eu assumo o que quero fazer já tenho muito mais facilidade em procurar as pessoas para fazerem comigo. Enquanto que se eu estiver só a seguir aquilo que alguém está a projectar para mim, fico sujeita ao que me apresentam, as pessoas nunca percebem bem o que é que eu quero fazer, e então aquilo fica sempre ali muito por dizer. Ao decidir fazer este disco desta forma eu obriguei toda a gente a ser corresponsável com ele. Foi duro, e tive dias em estúdio de estar a mostrar até que ponto o dizerem que gostam de fazer um disco não está a ser reflectido na forma como o estão a tocar. E porquê? Por medos, por vícios, por hábitos, por tudo. E isso faz com que no dia em que a música sai exactamente como nós queremos, a atitude da equipa é de uma satisfação como eu nunca tinha visto no outro disco. Este “Diário” passa a ser um bocadinho de cada um.