12-3-2009

 

Abraão Usque

Samuel Usque

Salomon Usque

 

Em 5 de Dezembro de 1496, D. Manuel I promulgou o Édito em que dava aos judeus e mouros residentes em Portugal o prazo de 10 meses para se baptizarem e converterem à religião católica ou saírem do País. Esperava o Rei que fossem poucos os que optariam pelo exílio, mas não foi isso o que aconteceu. Aos milhares, os judeus procuravam um transporte que os levasse daqui para fora. Foram então tomadas medidas para dificultar a saída, fechando-se os portos marítimos, e exigindo que todos os embarques se fizessem no porto de Lisboa.

Havia muitas famílias judias para quem o exílio constituía uma completa ruína económica, ou porque perdiam os seus empregos em Portugal, ou porque não conseguiam capitalizar os seus bens para levar fundos para o estrangeiro. Por isso, tiveram de aceitar o baptismo como um mal menor, para salvarem pessoas e bens.  Foram acomodando-se à nova situação, aprenderam o catecismo, fazendo a desobriga anual obrigatória (confissão e comunhão) e controlada, mantendo, possivelmente, a saudade dos tempos de antigamente em que podiam manifestar abertamente as suas crenças.

Perturbá-los-ia, sem dúvida, o ódio que lhes dedicavam os autóctones, fruto sobretudo da inveja em relação à posição social e riquezas que os sefarditas (judeus ibéricos) conseguiam. Mas eram ostracizados pela distinção feita pela lei entre cristãos velhos e cristãos novos; estes últimos eram os que tinham algum elemento judeu nos seus ascendentes até à sexta geração!  Para se defenderem, tratavam de acumular sempre mais riqueza, em negócios rentáveis. Uma boa parte do comércio das especiarias e outros bens da Índia e do Brasil ficou nas mãos de judeus. Para além disso, faziam sacrifícios para enviar os filhos para a Universidade, em Lisboa, os mais remediados, ou para Salamanca, os que tinham posses para isso. Os diplomas universitários permitiam-lhes ocupar posições de relevo na administração pública e na sociedade, que compensavam a pecha de serem cristãos novos. No entanto, muitos cargos eram-lhes vedados pelo estatuto da “limpeza de sangue”, que afastava automaticamente os cristãos novos.

Mesmo assim, a situação era periclitante, como bem o demonstrou a matança em Lisboa de 1506, onde os cronistas apontam o assassinato de cerca de 2 000 cristãos novos. O Rei reagiu com determinação na punição de alguns culpados, mas o mal estava feito. Refez-se a situação de paz entre os dois sectores da população, mas, com a subida ao trono de D. João III em 1521, surgiu uma tempestade que iria afligir os cristãos novos durante três séculos: o tribunal da “santa” Inquisição.  Ainda tardou algum tempo a ser implantada, e autorizada pelo Papa, com os representantes do Rei a insistir por ela e os dos cristãos-novos a pressionarem e subornarem em Roma para que não fosse introduzida.

Ganhou o fanatismo religioso de D. João III e apareceu a Inquisição em 1536. A batalha estava perdida para os cristãos novos. Como tribunal, a Inquisição era intrinsecamente perversa, porque condenava não por aquilo que os cristãos novos faziam, mas por aquilo que pensavam, aquilo em que acreditavam ou em que os inquisidores queriam pensar que eles acreditavam.

Pela força das circunstâncias, os cristãos novos tinham tido de abandonar toda e qualquer prática religiosa judia. É o que H.P. Salomon (1991) conclui logicamente do texto de João Themudo, (Anexo 1):  «Nous pouvons inférer d’ailleurs, du rapport soumis au roi Jean III en 1524 par le docteur Jean Themudo, que les Nouveaux Chrétiens avaient abandonné la circoncision, l’étude de l’hébreu, les préceptes alimentaires et les jeûnes».

Não. Não eram as práticas religiosas judias que a Inquisição visava combater. Era, sim um meio de controle e exercício de poder, para, satisfazendo as populações tradicionais, afastar os recém chegados cristãos novos de posições salientes. E o poder da Inquisição cresceu tanto que no século seguinte excederia o do Rei D. João IV, que não foi capaz de lhe arrancar das unhas os seus amigos, Manuel Fernandes Villa-Real, D. Rodrigo da Câmara, Conde de Vila Franca e só a muito custo salvou Duarte da Silva da fogueira (mas não de cinco anos de cárcere). 

A introdução da Inquisição determinou o êxodo de muitos cristãos novos que depressa deram conta de que nada de bom poderiam esperar em Portugal. Fugia-se sobretudo de barco, pois a viagem por mar era mais cómoda e mais rápida. Como o maior tráfego se dirigia à Flandres, para aí foram muitos cristãos novos, que depois se dirigiram para Amesterdão ou para Antuérpia, onde se formaram importantes comunidades. 

Entre os cristãos novos que deverão ter abandonado Portugal nesta época, estão três personagens bastante conhecidos, mas não ainda o suficiente, como veremos. Os três estão ligados às artes e são conhecidos pelo mesmo sobrenome, embora não se saiba o parentesco entre eles.

 

ABRAÃO USQUE

 

Está hoje provado que Abraão Usque era o nome judeu de Duarte (ou Eduardo ou Odoardo) Pinel, que terá partido de Lisboa, por volta de 1543. A identidade resulta não apenas da sua autoria da tradução da Bíblia de Ferrara, como de um documento encontrado por Renata Segre (Salomon, 2004) em 1992. Já Salomon (1991) indicara dois processos da Inquisição que poderiam ter a ver com ele: o Pr. n.º 12743 contra Duarte Pinel, iniciado em 1563, seria impossível que lhe respeitasse; o outro era o processo n.º 716 - online, de 1542 contra Duarte Pimentel ou Duarte Pinel, bacharel, mestre de Latim. Este processo está agora online na base de dados da Torre do Tombo, mas é muito difícil de ler. Com a ajuda de dois técnicos, H.P. Salomon (2004) pôde transcrever três páginas que reproduziu no citado artigo, de 2004. O processo não está terminado, sugerindo assim que ele poderá ter fugido do País para a Flandres naquela altura.

Também se lhe atribui a autoria de uma gramática latina, publicada em Lisboa em 1543, de que um original está no Rio de Janeiro e um microfilme deste na BNP, em Lisboa:

EDUARDI Pinelli Lusitani, Latinæ Grãmaticæ Compendium. Eiusdem tractatus de Calendis. Prima Editio. Ulissipone apud Ludovicum Rhotorigium Typographum. 1543.

Transcrevo aqui o original do soneto que no volumezinho, lhe dedica Jorge Lopes, Lisboeta, bem como a tradução do Prof. Doutor Raúl Miguel Rosado Fernandes que H.P. Salomon publicou (2004):

 

Georgius Lopez Ulisiponensis

 

Ad Lectorem

 

 

Ut qui divitias: et Crœsi calculat aurum,

      Ingentes summas exprimit ære brevi.

Docta palæmoniæ sic hæc compendia lector

      Artis: quæ mira condita laude vigent.

Ostendunt leges: latii et præcepta nitoris.

      Inditio (minor ut sit tibi cura) brevi.

Omne ferunt punctum : nam vel brevitate lacones

      Ingenii superant dexteritate sui

Grandia sensa brevi gyro complexa: docentque

      Quidquid habent veterum dogmata prisca virum

Quam bene de latia lingua meus iste meretur

      Pinellus: Bona ope quam iuvat atque colit

Tyro sub hoc facies duce prima stipendia semper

      Si me audis, nam te præmia certa manent.

Prima rudimenta hic potes exercere: docebit

      Pinellus: studiis erudietque bonis.

Dein: tibi nam vires dabit assuetudo magistra:

      Agnosces: quantum mellis et oris habet.

 

Jorge Lopes Olisiponense

 

Ao Leitor

 

 

Tal como quem faz as contas às riquezas e ao ouro de Creso no

          Curto bronze enormes quantias

Assim, leitor, são estes doutos compêndios da arte de Palémon

          De admirável concepção e têm sucesso com louvor.

Mostram eles as leis e os preceitos do brilho do Lácio

          Com curtas exemplificações (para que o esforço seja menor).

Todos atingem o alvo, uma vez que vencem os Lacónios

          Pela brevidade e pela destreza do seu engenho.

Os grandes pensamentos são reduzidos a fórmulas breves,

          E ensinam tudo o que contêm as velhas regras dos antigos.

Grande é o serviço prestado à língua do Lácio por este meu querido

          Pinel, pela generosa riqueza que acarinha e cultiva.

Estudante, se me prestas ouvidos, ganharás sempre os primeiros prés

          Com este comandante, porque te esperam infalíveis recompensas.

Podes aqui pôr em prática os primeiros rudimentos. Pinel

          Te ensinará e instruir-te-á nos bons exercícios.

Depois, a habituação ao mestre dar-te-á os odres para boiar,

          E reconhecerás a grandeza da sua harmónica eloquência.

 

 

 

No processo n.º 716, o comportamento de Abraão Usque demonstra uma certa sobranceria perante os inquisidores, como se ele pudesse dominar aquela terrível máquina. Depressa deverá ter dado conta que tal seria impossível e achou preferível fugir do País e ir para Antuérpia. 

Havia uma comunidade alargada de cristãos novos portugueses em Antuérpia. Mas a Governadora da Flandres, a irmã de Carlos V, Maria de Habsburgo (1505 – 1558), viúva do Rei Luis II, da Hungria, mostrou-se bastante intolerante para com eles. Fora nomeada para aquele cargo por seu irmão em 1530, na condição de não voltar a casar.

Os cristãos novos portugueses tinham má fama, pior do que os próprios judeus espanhóis. É que, tendo sido baptizados, tornavam-se hereges, assim que manifestassem de qualquer modo uma crença judaica.

Proibidos de praticar a religião judaica, os cristãos novos de Antuérpia começaram a liquidar os seus bens e a preparem-se para partir em direcção a Itália, onde havia na altura uma certa tolerância para com eles. Dirigiram-se sobretudo para Ancona, Ferrara e Veneza (Andrade, 2000). Era um caminho longo e cheio de perigos, seja na Natureza (atravessar os Alpes), seja de populações hostis. 

Em 1549, ainda Abraão Usque estava em Antuérpia, devendo ter partido para Ferrara pouco tempo depois (Andrade, 2000).

Tanto em Ferrara sob o domínio de Ercole II, como em Ancona (território papal), o ambiente era favorável aos Cristãos Novos. A situação alterar-se-ia em Ancona em 1555, quando foi eleito Papa o Cardeal Caraffa que tomou o nome de Paulo IV e se demonstrou extremamente intolerante, ao ponto de se regozijar com a morte pelo fogo de 24 judaizantes em Ancona em Maio de 1555.

Em Ferrara, o nome de Abraão Usque ficou ligado à sua gestão de uma tipografia que ficou célebre por ter imprimido uma tradução da Bíblia para espanhol para uso dos hebreus, embora tal não seja declarado.

Na origem da tipografia, um pedido de autorização ao Duque de Novembro de 1551, feito por Jerónimo Vargas (espanhol) e o poeta novilatino português Diogo Pires (Dydacus Phyrrus) , “para imprimir nesta cidade livros, sobretudo espanhóis”.  Diogo Pires abandona pouco depois a empresa  e parte de Ferrara para Ancona e depois para Inglaterra. É substituído por Abraão Usque que, juntamente com Vargas, se dedica à tradução, redacção e impressão da Bíblia (Antigo Testamento) em espanhol, em caracteres góticos.  Foi um trabalho ingente, pois, no final de Fevereiro de 1552, estavam já prontos os primeiros exemplares.  A Bíblia teve duas tiragens ligeiramente diferentes:

- uma que diz “con industria e diligencia de Abraham Usque Portugues, estampada en Ferrar à costa y despesa de Yom Tob Atias, hijo de Levi Atias, Español, en 14 de Addar de 5313”; é dedicada a Gracia Nasci, viúva de Francisco Mendes, que em Portugal se chamava Beatriz de Luna;

- outra, “con industria e diligencia de por Duarte Pinel  Portugues, estampada en Ferrara à costa y despesa de Ierónimo de Vargas Español, en primero, de Março de 1553”; é dedicada ao Duque de Ferrara, Ercole II.  

Defenderam alguns autores que a primeira versão se destinava aos hebreus e a segunda aos cristãos.  Um argumento adicional era que em Isaías, n.º 7,  vers. 14, onde está “a jovem concebeu e dará à luz um filho”, a primeira versão traduziu  o hebraico  המלע por moça e a segunda por virgem.

Rodriguez de Castro e Graetz aduzem argumentos em sentido contrário. É evidente que Usque e Navarro precisaram de financiamentos para produzir obra tão volumosa e dispendiosa. As dedicatórias indicam quem os financiou e são um agradecimento dos editores; seria impossível colocar as duas dedicatórias no mesmo exemplar. É possível que a palavra virgem em vez de moça se destinasse a facilitar a aprovação da censura prévia feita pelos peritos do Duque.

O título da capa é:

Biblia en lengua Española traduzida palabra por palabra de la verdad Hebrayca por muy excelentes letrados vista y examinada por el officio de la Inquisición. Con privilegio del yllustrissimo Señor Duque de Ferrara.

A tipografia esteve em actividade desde 1551/52 até 1558. A segunda obra impressa saiu do prelo em 7 de Setembro de 1553 e foi a Consolaçam as Tribulaçoens de Israel, escrita em Português por Samuel Usque e dela falaremos quando nos referirmos ao seu autor.

A terceira, um dia depois, (8-9-1553), foi a obra em hebraico Hosa’anot le-sukkot ou “Hosanas para a Festa das Cabanas”.

A quarta foi um livro de orações em tradução espanhola:

Mahzor, Orden de Roshasanah y Kipur, trasladado en español y de nuevo emendado Por industria y deligencia de Abrahã Usque Bem Selomoh Usque Portugues: y estampado en su casa y a su costa. En Ferrara 15 de Elul 5313 [=25 de Agosto de 1553] [no colofão] Estampado en Ferrara. 1553, a 22 des mês de Setembro.

Mais que tipógrafo ou compositor, Abraão Usque era pois editor e redactor do material a imprimir.

Em 1553 saíram do prelo três tratados em hebraico e uma publicação de natureza religiosa em espanhol.

Em 1554, foi publicado um compêndio de filosofia em espanhol e três obras em hebraico e, mais importante para nós, a História de Menina e Moça de Bernardim Ribeiro, que inclui o seguinte, conforme descrito na segunda página:

Do que no presente volume se contem he o seguinte

primeiramente a

História de Menina e Moça

Egloga    chamada Persio e Fauno

Egloga    Jano e Franco

Egloga    Silvestre e Amador

Egloga    Agrestes e Ribeiro

Egloga    chamada Jano.

Sextina, hontem posse o Sol, etc.

        E assi algũs motes e cantigas do mesmo

Hũa muy nomeada e agradável

Eglola chamada Crisfal que diz:

           Entre Sintra a muy prezada

Que dizem ser de Cristovã falcam. Ho que parece alludir ho

          Nome da mesma Egloga.

Hũa carta do dito, Hos presos cõtam os dias. Mil años por cada dia.

E outras cousas que entre lendo se poderam ver.

 

O último livro em língua vernácula que Abraão Usque publicou foi a Orden de Oraciones, em espanhol, em 1 de Outubro de 1555. Daí por diante, apenas publicou livros em hebraico, até 1558.

No início de 1559, esteve ainda em risco de ser incomodado. Foi o caso que, em Agosto ou Setembro de 1556, Abraão Usque publicou, em apêndice a um livro de Jacob Elia da Fano  Shiltey ha-gibborim (“Escudos de varões”), uma “Elegia sobre os mártires de Ancona”, por Selomo Hazan, de Ancona. O Papa Paulo V, por intermédio do Cardeal Ghisleri, insistiu junto do Duque de Ferrara, para que Usque fosse castigado e o panfleto queimado, (Salomon, 2004), mas o Duque nada fez.

H.P. Salomon (2004) resume a actividade da tipografia de Ferrara de Abraão Usque: 30 publicações, sendo 23 hebraicas, 5 espanholas (mais uma reedição) e 2 portuguesas.

Sabe-se que Abraão Usque foi, por volta de 1558, a Veneza comprar caracteres tipográficos hebraicos  o que sugere que terá  ido montar outra tipografia em local diferente, provavelmente na Turquia (Zavan).

 

SAMUEL USQUE

 

Pouco se sabe da biografia de Samuel Usque. Seria também Cristão Novo (ou marrano, que é o nome pejorativo por que eram conhecidos na Europa), mas desconhece-se o nome que tinha em Portugal, do baptismo. Será parente de Abraão Usque, mas não irmão, pois um documento notarial de Ferrara de 1552, dá-o como “filius quondam Abraham”, e teriam pois pais diferentes  (Zavan).

Em 1545 está em Ancona, onde participa em alguns negócios que correram mal; em 1546 parte para Ferrara (Leoni, 2000).

Em Outubro de 1549, parte para Pesaro depois de se incompatibilizar com Brianda de Luna, viúva de Diogo Mendes, de quem era agente comercial. Foi Gracia Nasci (Beatriz de Luna) que apaziguou os ânimos, através de um contrato escrito em que foi acordada a arbitragem por terceiros.

Sem dúvida, Samuel Usque tinha instrução, pois em 7 de Setembro de 1553, a Tipografia de Abraão Usque, em Ferrara, publicou dele a Consolação às Tribulações de Israel.

O livro relata a história dos sofrimentos do povo judaico, e espelha também os tormentos por que passou o próprio autor. A obra é constituída por três diálogos, entre três pastores, Ycabo (Jacob), Numeo (Nahum) e Zicareo (Zacarias):

1.Diálogo pastoril sobre coisas da Sagrada Escritura. Ycabo, Numeo e Zicareo. Interlocutores.

2. Diálogo segundo, no qual se trata a reedificação da segunda casa e todo o seu sucesso até ser por Titos destruída, e a consolação de tal perda.

3.Diálogo terceiro, no qual se trata desde a perda da segunda casa destruída pelos romanos, quantas tribulações padeceu Israel até este dia e ao pé todas as profecias que nelas se hão cumprido, e ultimamente sua consolação assim humana como divina.

No último Diálogo, conta Usque (cf. Rodriguez de Castro):

- o que sucedeu aos Judeus em Espanha, quando reinava Sisebuto, Rei dos Godos;

- o que aconteceu em França, na mesma altura;

- o que se passou em Toledo, na sequência da morte do Rei D. Rodrigo;

- o que sofreram na mesma cidade no ano de 1163;

- as providências tomadas contra ele por essa altura em várias zonas de Espanha e França;

- os acontecimentos na Pérsia em 1164;

- o que se passou na mesma altura na Alemanha;

- os acontecimentos de França por volta do ano 1183;

- os de Nápoles no ano de 1240;

- os de Inglaterra que começaram no ano seguinte;

- os de Flandres na mesma altura;

- os da Alemanha em 1262;

- os de França e Espanha em 1320;

- os de Itália e França no ano seguinte;

- os de Alemanha e França em 1346;

- os de Espanha, em 1390; 1455 e 1456;

- os deste mesmo Reino em 1488 e 1392;

- os de Portugal desde 1493 a 1506;

- os de Nápoles na mesma altura;

- os de Constantinopla em 1542;

- os de Salónica em 1545;

- os de Boémia no ano seguinte;

- os de Itália em 1551;

- os de Pesaro em 1553.

 

Termina com um Salmo dito por Ycabo que tem por título: “Última consolação e divina com todas as profecias da Sagrada Escritura que claramente promete os bens que esperamos por certo remédio de todos os nossos males e tão largo que não somente os vivos mas todos os mortos que tantos tempos há que ainda na sepultura esperam hão-de ressuscitar para os gozarem”.

O livro é dedicado a Gracia Nasci, a “Senhora”, que sem dúvida financiou a sua publicação.

O livro teve bastante difusão entre os Cristãos Novos, embora fosse logo colocado no Index dos livros proibidos pela Igreja Católica.

Por volta de 1599, foi publicada em Amesterdão nova edição, totalmente copiada, com alguns erros, da primeira.

Em 1906, o Prof. Mendes dos Remédios publicou em Coimbra nova edição, na casa França Amado, que reviu e prefaciou.

Graetz, baseando-se numa notícia de um livro em hebraico de Isaak Akrisch diz que Samuel Usque viveu depois em Safed  (no extremo norte de Israel), onde fomentou “agitações nacional-românticas”.

 

SALOMON USQUE

 

Costuma associar-se a Abraão e Samuel Usque, o nome de Salomon Usque que, mais ou menos na mesma altura (pouco depois), publicou obra literária. A associação não é exacta, pois, como bem demonstram os estudos de Gabriella Zavan e do Prof. António Andrade, Salomon Usque neste caso não é um nome mas um pseudónimo literário.

Sobre o assunto, foi publicado em Itália o belo livrinho de G. Zavan, que, segundo tudo indica, foi preparado a partir da tradução da sua tese em espanhol Luces y sombras en la vida de un traductor (2001), após o falecimento dela em 13 de Dezembro de 2003, por iniciativa do seu viúvo, Piero Trivellato e da editora onde ela, aliás, colaborava.  

Até aos anos 40, considerou-se sempre, seguindo o testemunho de João Rodrigues Castelo Branco, o Amatus Lusitanus, que Salomon Usque era o a mesma pessoa que Duarte (ou Eduardo ou Odoardo) Gomes, que se distinguiu como médico, mercador e homem de letras. Foi então que Cecil Roth (1943) escreveu o célebre artigo onde concluiu o contrário: seriam duas pessoas diferentes. G. Zavan rebate todos os argumentos de Roth e apenas se coíbe de concluir decisivamente pela hipótese contrária. Deixa ela a questão em aberto, assinalando as posições de Y.H. Yerushalmi que defende como Roth identidades diferentes  e a de H.P. Solomon que diz que Roth se enganou e que Salomon Usque e Duarte Gomes são a mesma pessoa. Na sua tese, Jordi Canals segue algo acriticamente C. Roth, mas não discute o assunto; o seu trabalho preocupa-se mais com o exame literário da tradução do que com a biografia. O Prof. Andrade afirma decididamente que Salomon Usque é um pseudónimo literário de Duarte Gomes.

Antes de escrever „‘Salusque Lusitano‘ (An Essay in Disentanglement)“,  Roth também estava convencido de que eram a mesma pessoa e assim o escreveu em Jewish Communities Venice (1930), embora com algumas confusões pelo meio:

Pag. 68 - Solomon Usque, alias Duarte de Pinel, the first modern Jewish playwright 

Pag. 199 - Solomon Usque (or Duarte Gomez, as he had been called in Portugal), a Marrano refugee,

Após a publicação do seu artigo, já não repete o mesmo, mas não deixa de fazer outras confusões no livro History of the Jews in Italy (1946):

P. 223 - and the Spanish playwright, Solomon Usque, besides translating Petrarch's sonnets into his native language, published an Italian poem on the Creation, which he dedicated to Cardinal Borromeo. 

Salomon Usque traduziu Petrarca para espanhol e não para a sua linguagem de nascimento que era o Português.

O primeiro argumento de C. Roth é que Graetz havia lido mal Barbosa Machado.  Ora a verdade é que Graetz não utiliza o texto de Barbosa Machado para justificar a identidade entre Salomon Usque e Duarte Gomes: apenas se limita a referir o que diz Barbosa Machado, sem mesmo se dar ao trabalho de o rectificar quando aquele atribui a Alfonso de Ulloa o soneto da autoria de Duarte Gomes que precede a tradução de Petrarca.  Depois de transcrever o que diz Barbosa Machado, Graetz diz: “o acrítico Barbosa nem sequer deu conta que Salomo Usque (…) e Duarte Gomez (…) são uma e a mesma pessoa. Isso sabemo-lo pelas Centúrias do médico Cristão Novo Amatus Lusitanus, à época, companheiro de infortúnio dos três Usque”.

De facto, foi o texto de Amatus Lusitanus o único argumento utilizado por Graetz:

 

Eduardus Gomez Lusitanus, vir gravis, doctus et poeta non vulgaris, ut qui Petrarcae numeros hendecasyllabos et cantiunculos hetrusca lingua scriptos in linguam Hispanicam vertat, ita cordate, apposite et suis numeris consone, ut omnibus admirationi fuit, hoc anno aetatis suae quadragesimo quinto ex Venetiis, ubi varia et ingentia mercium negotia exercet, Anconam venit, ubi ab amicis (ut fieri solet) ad opípara et lauta convivia invitatus, in duplicem tertianam lapsus est.  (Centuria V, curatio XIX)

 

Isto é,

Duarte Gomes Lusitano, um varão de respeito, douto e poeta não vulgar, o qual, para traduzir com sucesso para a língua castelhana os versos hendecassílabos e as canções de Petrarca escritos em língua italiana, [usa de] de um modo tão adequado, conveniente e ajustado aos seus próprios ritmos que suscita a admiração de todos; aos 45 anos, chega ele de Veneza, onde se dedica a variados e importantes negócios comerciais, a Ancona onde, tendo sido convidado por amigos, como é hábito, para opíparos e lautos banquetes, caiu doente com uma dupla terçã. (tradução de Andrade, 2005B)

 

Diz Roth que, se Duarte Gomes tinha 45 anos, seria na altura o ano de 1555 e não se compreende que ele esperasse 12 anos para publicar a sua obra. Pelo contrário, parece que é perfeitamente natural que o acabamento e revisão de uma obra de tal gabarito levem muitos anos a realizar.

Também impressiona Roth que Duarte Gomes fosse absolvido em dois processos da Inquisição de Veneza, se tivesse publicado um livro importante com um nome de judeu. Mas, por isso mesmo, é que a publicação foi uma operação muito discreta, de tal modo que à época, a obra não poderia ser atribuída publicamente a Duarte Gomes.

Também impressiona C. Roth, que no livro figure um soneto dedicado por Duarte Gomes ao autor. Trata-se de facto, de uma operação de ilusionismo, destinada a salvar a pele do autor, que com razão temia as perseguições da Inquisição de Veneza.

Diz C. Roth que Duarte Gomes não tinha um “strong Jewish sentiment” e aí tem razão. Mas a tradução de Petrarca, para ser levada a cabo, não precisava de nenhum forte sentido de Judaismo, mas sim de uma forte cultura e de uma instrução profunda em literatura e línguas espanhola e italiana, que Duarte Gomes tinha.

Entendo que o ponto mais fraco da argumentação de C. Roth, é que ele não adianta nenhum argumento para desacreditar as afirmações de Amato lusitano.

Voltando ao princípio:

Em 1567, na tipografia veneziana de Niccolò Bevilacqua, foi publicada a primeira tradução para língua espanhola de parte do Canzoniere de Petrarca, com o título:

«De los Sonetos, Canciones, Mandriales y Sextinas del gran Poeta y Orador Francisco Petrarca, traduzidos de Toscano por Salusque Lusitano [Salomon Usque Hebreo]. Parte primera. Con breves Sumarios, ò Argumentos en todos los Sonetos y Canciones que declaran la intencion del autor. Compuestos por el mismo. Con dos Tablas, una Castellana y la otra Toscana y Castellana. Con privilegios. En Venecia. En casa de Nicolao Bevilaqua, MDLXVII».

Houve duas tiragens diferentes do livro:  alguns exemplares indicam como autor “Salusque Lusitano”, outros “Salomon Usque Hebreo”. Daqui se conclui que o autor era Português e Cristão Novo. Barbosa Machado ficou muito confuso com esta situação e abriu na sua Biblioteca duas fichas com os nomes Seleuco Lusitano e Salusque Lusitano (ver Anexo 2).

Sabemos hoje que Salomon Usque não poderia também ser o nome judeu de Duarte Gomes, uma vez que a sua família usava o nome Zaboca. Assim é referido por Henrique Nunes, filho de Nuno Henriques, com o nome judeu de Abraão Benveniste e a alcunha de Righetto, no processo n.º 2931, da Inquisição de Lisboa:

 

Depoimento de 8 de Março de 1581 

Disse que no dito tempo conheceu em Ferrara um cristão novo morador nesta cidade, que cá se chamava João Fernandes, o livreiro, o qual se foi deste Reino há muito tempo, mas depois do ano cinquenta e dois, segundo o seu parecer e lá se publicou por judeu e como tal vivia e se pôs nome Samuel Picho o qual será de idade agora (se for vivo) de oitenta anos e levou consigo sua mulher a que não sabe o nome e dois filhos: um deles é falecido e outro se chama lá Jacob Picho, e cá não sabe como se chamava; e levou também quatro ou cinco filhas, as quais não sabe os nomes, nem de Judias, nem de Cristãs, mas uma delas é casada com Duarte Gomes, que lá se chama David Zaboca, mercador principal, o qual foi desta cidade já casado com ela; e outra filha é casada com Cristóvão Mendes, que lá se chama Joseph Serralvo Mendes, filho do doutor Fernão Mendes de Florença e lá casaram em Florença; e outra filha é casada com um judeu português que de cá foi, que lá se chama David Cohen, e não sabe como se chamava em nome português, nem de que lugar é natural, somente ouviu dizer que era de Alentejo, e que cá tinha pai e um irmão, e não quis lá dizer como se chamava neste Reino,  e no dia que chegou se fez judeu e é muito zeloso da Lei dos Judeus e se deu muito a isso, e todos os ditos homens e mulheres que nomeou são lá Judeus públicos.

 

O nome judeu de Duarte Gomes seria pois David Zaboca. De outras fontes, sabemos que teve quatro filhos e quatro filhas, que era casado com Clara, a qual ficara em Ferrara quando ele estava em Veneza; que tinha consigo os três filhos mais velhos, enquanto os outros cinco ficaram com a mãe; que os filhos eram cristãos baptizados.

Mais tarde, um seu filho, de nome João, voltou ao judaísmo e adoptou o nome de Samuel Zaboca. Em 1575, foi acusado de possuir livros proibidos que ele disse ter recebido de seu pai. C. Roth diz que ele os herdara, dizendo que Duarte Gomes teria já falecido, o que não prova.

Para afirmar que Salomon Usque não vai além de um pseudónimo literário, há ainda um outro argumento. O nome de Salomon Usque aparece apenas a propósito e como autor de diversas publicações. Dizem alguns que ele seria mercador, mas tal nome não aparece em quaisquer documentos respeitantes a transacções, actividades comerciais ou contratos civis. Então de que vivia aquele autor, se o seu nome não aparece em lado nenhum?

Após a investigação do Prof. António Andrade, estamos hoje em condições de afirmar que Duarte Gomes tinha preparação e formação para se abalançar à tradução de Petrarca.

 Deverá ter começado a estudar Artes em Salamanca por volta de 1526, aos 15 anos (Andrade, 2005B); em 1529, examinado por Pedro Margalho, ficou bacharel. Foi depois estudar Medicina, que concluiu em 24 de Abril de 1532. Veio então para Portugal, depois de uma passagem por Medina del Campo. Prepara então a licenciatura em Medicina na Universidade de Lisboa, que obtém em 31 de Janeiro de 1534.  Em Lisboa, vagara a cadeira de Filosofia Natural dada por Garcia de Orta em 1 de Março de 1534, quando este decidiu partir para a Índia (embarcou a 9); ficou a “ler" a cadeira Aires de Luna a partir de 9 do mesmo mês “até às vacações do mesmo ano”. Em eleição do Conselho da Universidade, realizada em 12 de Agosto de 1534, foi eleito Duarte Gomes para lente de Artes, sendo preteridos  Manuel Dias, António Luis, Manuel Reinel, Manuel Lindo e Jerónimo Fernandes. Assim “Duarte Gomes, licenciado em Medicina, levou a cadeira de filosofia natural por oposição em 9 de Novembro deste ano (1534), e a leu até a Universidade se mudar para Coimbra, e em 1 de Outubro de 1535, fez a oração de sapiência”.(Ferreira)  (Será que não se encontra esta oração de sapiência?)

Falava assim verdade Duarte Gomes quando, no processo da Inquisição em Veneza, declarava que fora professor em Lisboa “com salário régio”.

Tinha, pois, Duarte Gomes preparação condigna para traduzir Petrarca. E compreende-se que tenha optado pela língua castelhana, uma vez que a maior parte da sua formação tinha decorrido em Espanha.

Um argumento forte para que se identifique Salomon Usque como sendo Duarte Gomes, é, como referiram já G. Zavan e o Prof. Andrade (2005B),  a dedicatória que a este faz Girolamo Ruscelli no livro Del modo di comporre in versi nella lingua italiana, trattato di Girolamo Ruscelli, Nel quale va compreso un pieno & ordinatissimo Rimario. Nuouamente mandato in luce. Venetia, appresso Gio. Battista Sessa et Melchior Sessa fratelli, 1558:

 

Et oltre a ciò sapendosi, che in questa parte della poesia ella si diletta tanto, e vi è tanto eccellente, che essendo ella nata Portoghese, e havendo studiato ancora molti anno in Francia, conversato tanto nelle corti, e in quasi tutte le Città illustri d’Europa, ne sia divenuta tale, che con la cognizione delle lingue migliori ella habbia ridotto à tanta perfettione il fare verso nella bellissima lingua Castigliana, che già si veggia, che V.S. con quella lingua fa vaghissima concorrenza all’Italiana, e parimente con l’Italiana a quella.

Et fra molti dotti et rarissimi componimenti suoi, ella habbia fatto il Petrarca nostro in lingua Castigliana, con tal maniera che a chi non sapesse la verità dell’istoria, si farebbe dubbioso in quale di queste due nobilissime lingue, Italiana, o Spagnuola, il Petrarca l’havesse scritto.

……………………………………………………… 

… che dopo il servigio di Dio, si tiene come santamente obligata di mettere ad ogni occasione non solamente la roba, ma ancora i figliuoli, e la vita propria per servigio de quelle Serenissime, Cristianissime, e Religiosissime Maestà.

Et oltre a ciò sapendo il mondo quanto io fui non solamente affezionato, ma ancora altamente obligato alla nobilissima casa da ESTE, antico, continuato, vero e gloriosissimo splendore dell’Italia, viene a conoscere insieme quanto lietamente, e con quanta ragione io debbia amar e osservar V.S. conoscendola non solamente tanto affettionata de’detti Illustrissime e Eccellentissimi miei Signori, ma ancora tanto amata e riverita da loro, che sia stato gioiosamente avvertito dai buoni, con quanta altezza d’animo, con quanta bontà vera, e con quanta lor gloria quei Signori in queste differenze, o guerre dell’anno adietro habbiano avvuta così sicura e così cara la persona di V.S. in FERRARA, che andava, e tornava ad ogni talento suo, e tanto qui in Venetia in persona con l’illustre S. Ambasciatore di sua Maestà, quanto in ogn’altro luogo , con ogn’altro suo ministro per lettere, e per messi negoziava così liberamente, come haveva fatto sempre.

 

Como diz G. Zavan, mesmo descontando o exagero típico das dedicatórias da época (e Duarte Gomes estaria eventualmente a financiar a edição), Ruscelli não pode deixar de se referir à publicação de uma tradução condigna da obra de Petrarca e não a qualquer trabalho manuscrito de um amador.

Vejamos outras obras assinadas por Salomon Usque.

Aparece um soneto em espanhol assinado com este nome no prefácio ao livro de Alfonso de Ulloa, Comentarios del S. Alonso de Alloa, de la guerra, que el Illustrss. Y valerosiss. Principe don Hernando Alvarez de Toledo, duque de Alba […] há hecho contra Guillermo de Nausau Principe de Oranges, Venecia, Domingo de Farris, 1569. É um soneto laudatório a D. Luis de Zúñiga y Requesens, a quem o livro é dedicado por Ulloa; o soneto está transcrito na tese de Jordi Canals na nota 80 do cap. 2.º.

Foi publicada uma canção em italiano que em C. Roth (1943) aparece com o título (por ele atribuído segundo G. Zavan) de  “Canzone sull’opera de’ sei giorni” e cujo primeiro verso é “Su’l cominciar del tempo, quando a quella” na antologia Nuova scelta di rime di diversi begli ingegni, [a cura di Crisotoforo Zabata], Genova, Cristoforo Bellone, 1573.  O poema está dedicado ao Cardeal (S. Carlos) Borromeo.

Jordi Canals publicou e incluiu na sua tese outro poema dele que se encontrava em manuscrito em italiano, mas com o título em espanhol: “Canción de las seis edades”, cujo primeiro verso é “Nella primiera età non fu, in che piacque”.

Acrescem dois sonetos que encerram o relatório assinado por Salomon Usque sobre os acontecimentos do Inverno de 1595 em Constantinopla, enviados a Londres nesse mesmo ano e ainda a Paris (numa redacção pouco diferente) em 1596.

Este relatório (trancrito na tese de Jordi Canals e – na versão de 1596 – no livro de G. Zavan) levanta eventualmente um problema para a identificação de Salomon Usque como sendo Duarte Gomes, assinalado também por C. Roth. Só através de uma longevidade fora do vulgar e excepcional para a época, é que se pode admitir que Duarte Gomes estivesse ainda vivo aos 86 anos. G. Zavan diz que não seria impossível um ancião daquela idade redigir aquele texto.  Outra hipótese seria que alguém da família, noutra geração, adoptasse na Turquia o mesmo pseudónimo.

Sabemos também que Salomon Usque foi dramaturgo, embora a tragédia que escreveu “Ester” não tenha chegado até nós. Em 1619, o Rabino Leon Modena publicou “L’Ester, tragedia tratta dalla Sacra Scrittura”, dizendo que sessenta nos antes, Salomon Usque, com a ajuda de Lazaro di Graziano Levi – tio materno do Rabino – tinha escrito aquela tragédia destinada apenas a um público hebreu. Mas os nobres venezianos interessaram-se pelo texto e foi de novo representada em 1591. Já no Sec. XVII, o Rabino entendeu que o estilo estava desactualizado e, por isso decidiu reformulá-la, alterando o texto em cerca de dois terços, diz ele.

 

DUARTE GOMES

 

Vejamos agora os passos conhecidos da vida de Duarte Gomes.  Contra ele foram instaurados na Inquisição de Veneza, em 1555 e 1558, processos de que saiu absolvido.  Os processos têm elementos interessantes para conhecer a sua vida.

Era filho de Gonsalvo (Gonçalo?) Fernandes e de Inês Gomes. Tinha três irmãos, Guilherme, Tomás e Vicente, que, fora de Portugal, tinham regressado à religião judaica, adoptando os nomes de Abraão, José e Iona.

Em 1544, era, juntamente com Agostinho Henriques, agente comercial de Gracia Nasci na Flandres, onde ficou algum tempo. G. Zavan situa a sua partida para Itália em 1549. Nos anos seguintes, viveu entre Ferrara e Veneza (são hoje 115 Km. entre as duas cidades).  Estava em Ferrara em 1553, quando a Tipografia de Abraão Usque estava em plena actividade e foi publicada a Consolação às tribulações de Israel. Um João Fernandes, que deveria ser o seu sogro, tinha uma livraria na cidade.

Entretanto, a sua patroa, Gracia Nasci, abandonou Veneza nos últimos meses de 1552 e chegou à Turquia no início de 1553. Mais uma vez deixou Duarte Gomes e Agostinho Henriques encarregados dos negócios dela.

Em 26 de Março de 1555, foi-lhe instaurado o primeiro processo na Inquisição de Veneza, onde foi absolvido em 10 de Setembro do mesmo ano. A esta absolvição não será estranha a recomendação feita pela Sublime Porta às autoridades de Veneza, para que os representantes de Gracia Nasci fossem bem tratados; deste modo Veneza poderia contar sempre com os necessários fornecimentos de cereais. É um documento de 1 de Maio de 1555 descoberto e transcrito por G. Zavan.

Um outro processo foi instaurado no Tribunal Civil contra ele em 1557, juntamente com Agostinho Henriques, mas a denúncia foi considerada sem fundamento.

Duarte Gomes era muito conhecido nos meios literários. Sendo homem rico, era solicitado para financiar edições de livros que, como retribuição, lhe eram depois dedicados. Será o caso da tragédia La Medea, de Lodovico Dolce, publicada em 10 de Outubro de 1557, que o conhecia apenas através de Alfonso de Ulloa. Foi também o caso de Ruscelli já acima referido.

Alfonso de Ulloa apenas lhe dedicou a tradução para italiano da Segunda Década da  Ásia de João de Barros. Mas faz a Duarte Gomes outras referências, por exemplo esta, no livro Vita dell’Invittissimo e Sacratissimo Imperator Carlo V. Con l’aggionta di molte cose utilli all' historia. Nella quale si comprendono le cose più notabili accorse nel suo tempo; incominciando dall anno MD al MDLX. Venezia: appresso Domenico Farri, 1562:

 

Usò l’Imperadore di grandissima liberalità verso tutte quelle donne e gentil’huomini, che vennero di Portogallo con la Imperatrice, e spetialmente verso il Marchese di Vigliareale, che per ordine del Re Giovanni l’haveva condotta fin in Siviglia. Al qual dicono che fece un dono di 40. mila scudi d’oro, in due mila doppioni di venti scudi l’uno, moneta veramente bella, et che per tale effetto esso l’haveva fatta battere, stando d’una banda le effigie delle loro maestà, et dall’altra le arme Imperiali e Regali. Delle quali monete noi habbiamo visto una in Venezia nelle mani del nobile huomo Odoardo Gomez ricchissimo mercante, et honore della nation Portoghese. Il quale come persona letterata che fra il bellissimo studio, che fornito de ogni sorte di libri hà, n’hà ancora molte medaglie, e monete di oro, e d’argento antiche e moderne.

 

Alfonso d’Ulloa manifesta de facto uma admiração beata por Duarte Gomes.

As composições literárias em nome de Duarte Gomes são poucas. Para além do soneto inserido na tradução de Petrarca, transcrito por Barbosa Machado, que erradamente o atribui a Ulloa, há dois sonetos incluídos numa antologia organizada por G. Ruscelli em honra de D. Joana de Aragão

Del tempio alla divina signora donna Giouanna d'Aragona, fabricato da tutti i piu gentili spiriti et in tutte le lingue principali del mondo. Prima parte. In Venetia: per Plinio Pietrasanta, 1555 (G. Zavan).

Em 1568, foi feita mais uma denúncia anónima contra ele à Inquisição de Veneza, mas foi de novo absolvido. O seu nome de judeu não aparece no processo.

Em 1574, um homem chamado Luis Franco, cristão novo, de Aveiro, criado de El-Rei, denunciou-o como judeu à Inquisição de Lisboa (Baião), juntamente com mais 30 pessoas que disse ter conhecido em Ferrara e que sabia se tinham convertido ao judaísmo.

A partir desta data, desaparecem as notícias de Itália respeitantes a Duarte Gomes, sugerindo que ele terá então partido para a Turquia.

 

Aditamentos:

1 - Já depois do upload desta página, descobri na Torre do Tombo um processo da Inquisição de Lisboa contra Duarte Gomes. É certamente o mesmo de que se fala acima, pois diz Licenciado Duarte Gomes, físico, que tinha um irmão chamado Tomás. Como de costume, tenho muita dificuldade em ler o processo, que tem 37 folhas – tem o n.º 12784 (online). Segundo a ficha da base de dados, o processo iniciou-se a  2 de Novembro de 1542 e tem o último documento datado de 10 de Julho de 1544. Não consigo ver se, no início do processo, ele ainda estava em Lisboa, ou já tinha partido para Antuérpia.  

Felizmente, a fls. 11, está uma procuração notarial passada em espanhol em Antuérpia, com uma caligrafia magnífica. Tem a data de 23 de Agosto de 1543 e nela Duarte Gomes diz ter tido conhecimento de que os “reverendos senhores oficiais do Santo Ofício da Inquisição na cidade de Lisboa procedem contra ele pela desobediência que dizem que cometeu ao não apresentar perante eles uma escrava que lhe foi mandado apresentar”. Declara esperar demonstrar a sua inocência. Para poupar as despesas da citação, dá-se por citado para o dito caso. Constitui seu procurador seu irmão Thomás Gomes, morador na dita cidade de Lisboa.

De facto, seu irmão entregou no processo 30 cruzados como fiança. Aparecem depois no processo inventários do recheio das casas de Duarte Gomes em Lisboa e a seguir termos de avaliação do mesmo recheio. Segundo a ficha da base de dados, o Inquisidor multou o réu em 50 cruzados, no que se incluía a dita fiança. A diferença deverá ter vindo da venda do recheio das casas. Cinquenta cruzados ou sejam, 20 000 réis, eram uma quantia de respeito, sabendo-se que na época um professor universitário recebia de salário anual dez mil réis.

2 - Encontrei depois o Prof. António Andrade que me disse ter conhecimento deste processo da Inquisição há algum tempo e que aguarda que lhe seja feita a leitura dele por um paleógrafo, para completar uma monografia sobre Duarte Gomes - Salomon Usque.

 

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

 

Amato Lusitano, Curationum medicinalium Amati Lusitani medici physici praestantissimi centuriae duae, quinta videlicet ac sexta, ... cum indice omnium curationum quae ipsis centurijs continentur. Omnia nunc primum in lucem aedita. Venetiis, ex Officina Valgrisiana, 1560

online: http://alfama.sim.ucm.es/dioscorides/consulta_libro.asp?ref=x532958526

 

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Online:   http://www.vanda-anastacio.at/articles/1_PENSAR%20O%20PETRARQUISMO_locked.pdf

 

Andrade, António,  O Cato Minor de Diogo Pires e a poesia didáctica do século XVI, Tese de Doutoramento, Universidade de Aveiro, 2005A, texto policopiado, 554 pags.

Online: http://ria.ua.pt/bitstream/10773/4950/1/197048.pdf

 

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online: http://www2.dlc.ua.pt/classicos/desterro.pdf

            http://maytediez.blogia.com/2008/062301-os-senhores-do-desterro-de-portugal.-judeus-portugueses-em-veneza-e-ferrara-em-m.php

 

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Usque, Samuel, Consolaçam às tribulaçoens de Israel, com revisão e prefácio de Mendes dos Remédios, Coimbra, França Amado Editor, 1906.

 

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Zavan Gabriella, Gli ebrei, I marrani e la figura di Salomon Usque, Traduzione di Olivo Bin. Treviso, Santi Quaranta, 2004.

 

Zorattini, Pier Cesare Ioly, (a cura di), Processi del S. Uffizio di Venezia contro Ebrei e giudaizzanti, Firenze, Leo S. Olschki Editore, 1980 , vol. 1.º (1548-1560), 1980; vol. 2.º (1561-1570), 1982; vol. 3.º (1570-1572), 1984.

 

 

Zorattini, Pier Cesare Ioly, « Les nouveaux-chrétiens et les juifs d’origine portugaise à Venise au seizième siècle, selon les sources inquisitoriales de Venise et de Rome », in La Diaspora des « Nouveaux-Chrétiens », Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, Volume XLVIII, Lisboa-Paris, 2004, p. 183-196

 

 

Anexo 1

 

 

Carta de Jorge Temudo para D. João III informando-o das cerimonias que usavam os cristãos-novos. Lisboa, 1524, Fevereiro, 4

 

Senhor

 

Depois de beijar as mãos a Vossa Alteza e rogar ao Senhor Deus por seus dias de vida e acrecentamento de seu real estado.

 

Quamto ao que Vossa Alteza de mym quis saber em Montemor pela emfformaçam que do casso recebii ho mais secretamente que pude.

 

Item seja Vossa Alteza certo que estes homeens nom vam a igreja aos domingos e fiestas asi como per ella esta ordenado.

 

item nam se emterram nas igrejas donde sam ffregueses nem elegem nelas sepulturas mas mandam se emterrar nos adros de Nossa Senhora da Graça de Sam Roque da Trindade e do Carmo e alguuns delles se emterram nas crastas destes moesteiros em covas altas e terra virgem.

 

Item nunca tomam nem pedem ho sacramento da extrema unçam e morrem sem elle.

 

Item nom ffazem testamentos nem mandam ao tempo de seus emterramentos dizer nenhuuas misas oras nem trimtairos nem ffazem sacramentos aos oito dias nem ao mes nem ao anno posto que alguuns muito poucos quando se emterram lhe digam algua missa. Isto se ffaz a muito poucos.

 

Item ha hii presumçam que goardam ho sabado e pascoas antiguas.

 

Item todos se conffessam no tempo da Coresma e alguuns tomam ho santo sacramento da eucharistia em ho dia de quinta ffelra da Cea e em dia de pascoa.

 

Item quando sam doemtes conffessam se e alguuns tomam ho sacramento da comunham outros ho mandam levar aos curas e nam ho tomam dizemdo que nam podem outros ho nom pedem e morrem sem ho tomar.

 

Item sam muito caridosos antre si e os seus e pera ha gente doutra proffissam nom usam de nenhuua caridade.

 

Item no tempo da peste emterram muito bem os mortos asi os seus como os estranhos posto que sejam doutra naçam.

 

Item casam se a porta da igreja bautizam seus ffilhos nela e Isto ffazem muito bem.

 

Esta emfformaçam recebii pelos curas dalguuas igreja[s] desta cidade com os quaees pratiquey este caso em signal de comffisam. Elles dizem que se hii ouvese Inquisiçam que outras cousas mais claras se descubririam.

 

Se Vosa Alteza mandar que nisto se ffaça mais ffa lo hey asi como ffarei todas as outras de seu serviço.

 

Nosso Senhor muito alto e muito poderoso princepe rei e senhor a vida e estado de Vossa Alteza acrecemte e tenha sempre em sua santa goarda.

 

De Lixboa ha iiij de Fevereiro de 1524.

 

O doutor Jorge Temudo.

 

Gavetas da Torre do Tombo, n.º 258, II, 2-60.

 

 

 

Anexo 2

 

 

ABRAHAM USQUE nasceu em Portugal, onde educado com os preceitos do Talmud por seus Pais, sahio hum dos mayores professores dos erros da Sinagoga. O seu mayor disvelo foy penetrar o sentido litteral da Biblia, e para que a fizesse mais intelligivel aos Judeos, que assistiam em Hespanha, e Olanda, a traduzio do texto Hebraico na lingua Espanhola, e a dedicou a Hercules de Este Duque de Ferrara, e sahio impressa em caracter gothico com este titulo:

 

                Biblia en lengua Española traduzida palavra por palavra de la verdad Hebraica por muy excellentes Letrados, vista y examinada por el Officio de la Inquisicion. In fol.Ferrarae.Sumptibus Yom Tob Atiasanno mundi 5313 Christi.1553

 

                Esta tradução é palavra por palavra do Original, e não deixa de ser escura de se perceber por uzar de huma linguagem Hespanhola, que sómente se falla nas Sinagogas. Foy segunda vez impressa em Ferrara  ‑, e no fim tem estas palavras.  Con industria de Duarte Pinel Português; stampata a costa, y a despeza de Geronimo de Vargas Español en 1. de Março de 1553 . Nesta edição sahio com algumas palavras mudadas para ser mais intelligivel, porm a primeira he muito mais estimavel, como escreve o Padre Richardo Simon in Hist. Crit. Vet. Testam.liv.  5. cap.19.  Sahio terceira vez impressa por diligencia de Manasse Ben Israel em  Amsterdão decimo quinto Sabbati 5390  . que corresponde ao anno de Christo1630  . Bartoloccio naBib. Rabbin.  Part. 1. pag. 49. n. 103. & Part. 3. p. 785. n. 706. escreve que Abrahão Usque fizera esta tradução juntamente com seu companheiro Yom Tob Atias, porém Wolfio na Bib. Hebraea  pag. 31. n. 49. se oppoem a esta opinião affirmando que fora feita por outros Judeos, sendo impressa por diligencia de Abrahão Usque, como se colhe da edição de Ferrara, que no fim tem estas palavras. A gloria, y loor de nuestro Señor acabo la presente Biblia en lengua Española traduzida de la verdadera origen Hebraica por muy excelentes Letrados con industria, y diligencia de Abrahan Usque Portuguez estampata en Ferrara a costa, y despeza de Yom Tob Atias hijo de Levi Atias Español en  14 de Adar de 5313  ”. Porém sempre reconhece Wolfio, que não pode Abrahão Usque ser privado da gloria de trabalhar muito nesta traducção, como afirma Richard. Simon in "Disq. Crit. de var. Bib. edition.  cap. 14. dizendo : Verisimile est Abrahamum Usque Judaeum è Lusitania in adornanda hac translatione Hispana sibi praevios habuisse Doctores, qui ante illius tempora Biblia in Sinagogis hebraicè, & hispanice perlegerant, adeò ut plerasque illorum voces usurpaveritCompôs mais

 

                Orden de los Ritos de la Fiesta del Año Nuevo, y Expiacion, Ferrara  1554  .4.

 

                Além de Wolfio, Bartolocio, e Simon se lembrão de Abrahão Usque, Le Long. in Bib. Sacr.  Part. 2. pag. 124. Morery Diccionair. Historique,  -Magna Biblioth. Eccles. pag. 32. Col. 1.

 

 

 

SAMUEL USQUE, parente de Abrahão Usque, do qual se fez menção em seu lugar, Português como elle, e sequaz das doutrinas da Sinagoga. Compôs Consolação ás tribulaçoens de Israel.Ferrara por Abrahão Aben Usque anno da Creação do mundo 5313, e de Christo 1553. Esta obra atribue com engano a Abrahão Usque, Manoel AboabNomoleg.Part. 2. cap. 26. pag. 296. & ibi cap. 24. pag. 272condenando-lhe hum erro na Chronologia, com estas palavras.Que causa no pequeño espanto en un hombre dotado de buenas letras y versado en las historias, como el era. Consta a Consolação ás tribulaçoens de Israel-de três Dialogos de que são Interlocutores Jacob, Nahum, e Zacharias. Trata o primeiro das Calamidades dos Judeos antes do primeiro Templo: o segundo das que padecerão no segundo Templo: e o terceiro de todas aquellas que tolerarão até o tempo presente. Desta obra traz huma individual noticia Wolfio Bib. Heb.Tom. 3. p. 1072D. e seguintes. Tambem faz menção della, e de seu Author Nicol. Ant.Bib. Hisp.Tom. 2. p. 222. col. 1.

 

 

SELEUCO LUSITANO. Este author que declarou a Nação, e ocultou o nome, foy igualmente perito na lingoa Italiana, e Castelhana vertendo daquella nesta.

Sonetos, Cançoens, Madrigaes, e Sextinas do grande Poeta Francisco Petrarca.

Venezia. 1567. 4. Dedicado a Alexandre Farnezi Principe de Parma, e Placencia.

 

 

SALUSQUE LUSITANO, nome affectado com que encubrio o proprio. Traduzio da lingoa Italiana em a Castelhana com summarios, e argumentos que muito illustrão a tradução

 

Sonetos, Canciones, Madrigales, y sextinas del grande Poeta y Orador Francisco Petrarcha. Primeira Parte.Veneza por Nicolao Bevilaque 1567. 4. Dedicado a Alexandre Farnese Principe de Parma, e Placencia.

 

Affonso de Ulhoa, que traduzio em Italiano as Decadas de João de Barros, de quem fizemos menção em seu lugar fez o Prologo a esta tradução, e della diz. Solamente quiero dizir, que entre todas las obras escritas en verso, esta que es del famoso Francisco Petrarcha es la màs dificultosa de traduzir, que el ingenioso Salusque Lusitano que la ha traduzido merece mucho loor, por haverse obligado nò solo a la sentencia, mas aun a los mismos numeros de las silabas de los versos y de la respondencia de los consoantes.E logo abaixo. Hà traduzido toda la obra, pero nò publica aora finò la primera parte hecha en vida de Madama Laura, que es mas ella que todas las otras juntas.Em aplauso do Tradutor fez o seguinte Soneto o mesmo Ulhoa, o qual na Dedicatoria que fez da tradução das Decadas de Barros em Italiano a Duarte Gomes lhe louva aos seus filhos de muito peritos nas lingoas Grega, e Latina distinguindo entre elles a Pedro Giovane vivo, e di maraviglioso ingegno, o qual poderia ser o Salusque Lusitano.

 

Gozate Sacro Iberio, que has estado

Dos siglos con tus Nymphas decoroso

De oyr el canto grave y amoroso

Del Toscano Poeta celebrado.

Que en riberas del Arno fuè criado,

Y a Valcluza venido valle umbroso

La vista de un laurel verde, y hermoso

Le tuvo longamente enamorado.

"Sentirás pues agora sus concetos:

Caben sus dulces aguas cristalinas

En muy lindo Romance Castellano;

En el qual yá nos hablan los Sonetos

Canciones, Madrigales, y sextinas

Merced del buen Salusque Lusitano.

 

 

De:

Bibliotheca lusitana historica, critica, e cronologica : na qual se comprehende a noticia dos authores portuguezes, e das obras, que compuserão desde o tempo da promulgação da Ley da Graça até ao tempo presente, por Diogo Barbosa Machado (1682-1772), 4 vols., 1741.