13-07-2000

 

  GUERRA JUNQUEIRO

 

 

A valia de Guerra Junqueiro como poeta é discutível. Mas ninguém pode negar que A Velhice do Padre Eterno é um  poderoso libelo contra o obscurantismo da Igreja Católica em Portugal e contra os desmandos do clero.

 

 

 

 

POEMAS:

 

O Melro

Fiel

A Benção da Locomotiva

Como se faz um monstro

Aos simples

Parasitas

O Papão

 

 

              O MELRO


          O melro, eu conheci-o:

Era negro, vibrante, luzidio,

          Madrugador, jovial;

          Logo de manhã cedo

Começava a soltar, dentre o arvoredo,

Verdadeiras risadas de cristal.

E assim que o padre-cura abria a porta

          Que dá para o passal,

Repicando umas finas ironias,

          O melro; dentre a horta,

          Dizia-lhe: "Bons dias!"

          E o velho padre-cura

não gostava daquelas cortesias.


O cura era um velhote conservado,

Malicioso, alegre, prazenteiro;

Não tinha pombas brancas no telhado,

          Nem rosas no canteiro:

Andava às lebres pelo monte, a pé,

          Livre de reumatismos,

Graças a Deus, e graças a Noé.

O melro desprezava os exorcismos

          Que o padre lhe dizia:

Cantava, assobiava alegremente;

          Até que ultimamente

          O velho disse um dia:


"Nada, já não tem jeito!, este ladrão

          Dá cabo dos trigais!

          Qual seria a razão

Por que Deus fez os melros e os pardais?!"


          E o melro entretanto,

          Honesto como um santo,

          Mal vinha no oriente

          A madrugada clara,

Já ele andava jovial, inquieto,

Comendo alegremente, honradamente,

Todos os parasitas da seara

Desde a formiga ao mais pequeno insecto.

E apesar disto, o rude proletário,

          O bom trabalhador,

Nunca exigiu aumento de salário.


Que grande tolo o padre confessor!


          Foi para a eira o trigo;

          E, armando uns espantalhos,

          Disse o abade consigo:

"Acabaram-se as penas e os trabalhos."

Mas logo de manhã, maldito espanto!

          O abade, inda na cama,

Ouvindo do melro o costumado canto,

          Ficou ardendo em chama;

          Pega na caçadeira,

          Levanta-se dum salto,

E vê o melro, a assobiar, na eira,

Em cima do seu velho chapéu alto!


          Chegou a coisa a termo

Que o bom do padre-cura andava enfermo;

          Não falava nem ria,

Minado por tão íntimo desgosto;

E o vermelho oleoso do seu rosto

Tornava-se amarelo dia a dia.

E foi tal a paixão, a desventura

(Muito embora o leitor não me acredite),

          Que o bom do padre-cura

          Perdera  o apetite!


Andando no quintal, um certo dia,

Lendo em voz alta o Velho Testamento,

Enxergou por acaso (que alegria!,

          Que ditoso momento!)

Um ninho com seis melros, escondido

          Entre uma carvalheira.


E ao vê-los exclamou enfurecido:


"A mãe comeu o fruto proibido;

Esse fruto era minha sementeira:

          Era o pão, e era o milho;

          Transmitiu-se o pecado.

E, se a mãe não pagou, que pague o filho.

É doutrina da Igreja. Estou vingado!"


E, engaiolando os pobres passaritos,

          Soltava exclamações:

          "É uma praga. Malditos!

Dão me cabo de tudo esses ladrões!

Raios os partam! Andai lá que enfim"


E deixando a gaiola pendurada,

Continuou a ler o seu latim,

          Fungando uma pitada.


Vinha tombando a noite silenciosa;

E caía por sobre a natureza

Uma serena paz religiosa,

          Uma bela tristeza

Harmónica, viril, indefinida.

          A luz crepuscular

Infiltra-nos na alma dorida

Um misticismo heróico e salutar.

As árvores, de luz inda douradas,

Sobre os montes longínquos, solitários,

Tinham tomado as formas rendilhadas

          Das plantas dos herbários.

Recolhiam-se a casa os lavradores.

Dormiam virginais as coisas mansas:

          Os rebanhos e as flores,

          As aves e as crianças.


Ia subindo a escada o velho abade;

A sua negra, atlética figura,

Destacava na frouxa claridade,

          Como uma nódoa escura.

E, introduzindo a chave no portal,

          Murmurou entre dentes:


          "Tal e qual tal e qual!

Guisados com arroz são excelentes."


          * * * * * *

          

Nasceu a Lua. As folhas dos arbustos

Tinham o brilho meigo, aveludado,

Do sorriso dos mártires, dos justos.

Um eflúvio dormente e perfumado

Embebedava as seivas luxuriantes.

Todas as forças vivas da matéria

Murmuravam diálogos gigantes

          Pela amplidão etérea.

São precisos silêncios virginais,

Disposições simpáticas, nervosas,

Para ouvir falar estas falas silenciosas

          Dos mundos vegetais.

As orvalhadas, frescas espessuras,

Pressentiam-se quase a germinar.

Desmaiavam-se as cândidas verduras

Nos magnetismos brancos do luar.

..................................................

..................................................


E nisto o melro foi direito ao ninho.

Para o agasalhar, andou buscando

Umas penugens doces como arminho,

Um feltrozito acetinado e brando.

          Chegou lá, e viu tudo.

Partiu como uma frecha; e, louco e mudo,

Correu por todo o matagal; em vão!

Mas eis que solta de repente um grito

Indo encontrar os filhos na prisão.


"Quem vos meteu aqui?!" O mais velho,

Todo tremente, murmurou então:


"Foi aquele homem negro. Quando veio,

Chamei, chamei Andavas tu na horta

Ai que susto, que susto!, ele é tão feio!

Tive-lhe tanto medo! Abre esta porta

E esconde-nos debaixo da tua asa!

Olha, já vão florindo as açucenas;

Vamos a construir a nossa casa

          Num bonito lugar

Ai! quem me dera, minha mãe, ter penas

          Para voar, voar!"


          E o melro alucinado

          Clamou:


                         "Senhor! senhor!

É porventura crime ou é pecado

          Que eu tenha muito amor

          A estes inocentes?!

Ó natureza, ó Deus, como consentes

Que me roubem assim os meus filhinhos,

          Os filhos que eu criei!

Quanta dor, quanto amor, quantos carinhos,

          Quanta noite perdida

          Nem eu sei...

          E tudo, tudo em vão!

          Filhos da minha vida

          Filhos do coração!!!

Não bastaria a natureza inteira,

Não bastaria o Céu par voardes,

E prendem-vos assim desta maneira!

          Covardes!

A luz, a luz, o movimento insano,

Eis o aguilhão, a fé que nos abrasa

          Encarcerar a asa

É encarcerar o pensamento humano.

A culpa tive-a eu! Quase à noitinha

          Parti, deixei-os sós

A culpa tive-a eu, a culpa é minha,

          De mais ninguém! Que atroz!

          E eu devia sabê-lo!

Eu tinha obrigação de adivinhar

Remorso eterno! eterno pesadelo!

.................................................


Falta-me a luz e o ar! Oh, quem me dera

          Ser abutre ou fera

Para partir o cárcere maldito!

E como a noite é límpida e formosa!

          Nem um ai, nem um grito

Que noite triste!, oh, noite silenciosa!"


E a natureza fresca, omnipotente,

          Sorria castamente

Com o sorriso alegre dos heróis.

          Nas sebes orvalhadas,

Entre folhas luzentes como espadas,

          Cantavam rouxinóis.


          Os vegetais felizes

Mergulhavam as sôfregas raízes

A procurar na terra as seivas boas,

Com a avidez e as raivas tenebrosas

Das pequeninas feras vigorosas

Sugando à noite os peitos das leoas.

A lua triste, a Lua merencória,

          Desdémona marmórea,

Rolava pelo azul da imensidade,

Imersa numa luz serena e fria,

          Branca como a harmonia,

          Pura como a verdade.

E entre a luz do luar e os sons das flores,

Na atonia cruel das grandes dores,

          O melro solitário

Jazia inerte, exânime, sereno,

Bem como outrora o Nazareno

          Na noite do calvário!


Segundo o seu costume habitual,

          Logo de madrugada

O padre-cura foi para o quintal,

Levando a Bíblia e sobraçando a enxada.

          Antes de dizer missa,

O velho abade inevitavelmente

          Tratava da hortaliça

E rezava a Deus-Padre Omnipotente

          Vários trechos latinos,

Salvando desta forma, juntamente,

As ervilhas, as almas e os pepinos.


E já de longe ia bradando:


                                 "Olé!

          Dormiram bem? Estimo

          Eu lhes darei o mimo,

Canalha vil, grandíssima ralé!

Então vocês, seus almas do Diabo,

Julgam que isto que era só dar cabo

          Da horta e do pomar,

E o bico alegre e estômago contente,

E o camelo do cura que se aguente,

Que engrole o seu latim e vá bugiar!

Grandes larápios! Era o que faltava

          Vocês irem ao milho,

          E a mim mandar-me à fava!

Pois muito bem, agora que vos pilho

Eu vos ensinarei, meus safardanas!

Vocês são mariolões, são ratazanas,

Têm bico, é certo, mas não têm tonsura

E, nas manhas, um melro nunca chega

Às manhas naturais de um padre-cura.

O melhor vinho que encontrar na adega

É para hoje, olé! Que bambochata!

Que petisqueira! Melros com chouriço!

          E então a Fortunata

Que tem um dedo e jeito para isso!

Hei-de comer-vos todos um a um,

Lambendo os beiços, com tal gana enfim,

Que comendo-vos todos, mesmo assim

Eu fico ainda quase em jejum!

E depois de vos ter dentro da pança,

          Depois de vos jantar,

Vocês verão como o velhote dança,

Como ele é melro e sabe assobiar!"


Mas nisto o padre-cura, titubeante,

          Quase desfalecendo,

Atónito de horror, parou diante

          Deste drama estupendo:


O melro, ao ver aproximar o abade,

          Despertou da atonia,

Lançando-se furioso contra a grade

          Do cárcere. Torcia,

Para os partir os ferros da prisão,

Crispando as unhas convulsivamente

          Com a fúria dum leão.

Batalha inútil, desespero ardente!

Quebrou as garras, depenou as asas

          E alucinado, exangue,

          Os olhos como brasas,

Herói febril, a gotejar em sangue,

Partiu num voo arrebatado e louco,

          Trazendo, dentro em pouco,

Preso do bico, um ramo de veneno.

E belo e grande e trágico e sereno,

Disse:

          "Meus filhos, a existência é boa

Só quando é livre. A liberdade é a lei,

Prende-se a asa mas a alma voa

Ó filhos, voemos pelo azul! Comei!" -


E mais sublime do que Cristo, quando

Morreu na Cruz, maior do que Catão,

Matou os quatro filhos, trespassando

Quatro vezes o próprio coração!

Soltou, fitando o abade, uma pungente

Gargalhada de lágrima, de dor,

E partiu pelo espaço heroicamente,

Indo cair, já morto, de repente

Num carcavão com silveiras em flor.


E o velho abade, lívido d'espanto,

          Exclamou afinal:

"Tudo o que existe é imaculado e é santo!

Há em toda a miséria o mesmo pranto

E em todo o coração há um grito igual.

Deus semeou d'almas o universo todo.

Tudo que o vive ri e canta e chora

Tudo foi feito com o mesmo lodo,

Purificado com a mesma aurora.

Ó mistério sagrado da existência,

          Só hoje te adivinho,

Ao ver que a alma tem a mesma essência,

Pela dor, pelo amor, pela inocência,

Quer guarde um berço, quer proteja um ninho!

Só hoje sei que em toda a criatura,

Desde a mais bela até à mais impura,

Ou numa pomba ou numa fera brava,

Deus habita, Deus sonha, Deus murmura!

............................................................

Ah, Deus é bem maior do que eu julgava"


E quedou silencioso. O velho mundo,

Das suas crenças antigas, num momento,

Viu-o sumir exausto, moribundo,

          Nos abismos sem fundo

Do temeroso mar do Pensamento.

E chorou e chorou A Igreja, a Crença,

Rude montanha, pavorosa, escura,

Que enchia o globo com a sombra imensa

Dos seus setenta séculos d'altura;

O Himalaia de dogmas triunfantes,

Mais eternos que o bronze e que o granito,

Onde aos profetas Deus falava dantes,

Entre raios e nuvens trovejantes,

Lá dos confins sidérios do infinito;

Esse colosso enorme, em dois instantes

Viu-o tremer, fender-se e desabar

          Numa ruína espantosa,

Só de tocar-lhe a asa vaporosa

Duma avezinha trémula, a expirar!

.................................................

.................................................

E, arremessando a Bíblia, o velho abade

Murmurou:

                "Há mais fé e há mais verdade,

          Há mais Deus concerteza

Nos cardos secos dum rochedo nu

Que nessa Bíblia antiga Ó Natureza,

A única Bíblia verdadeira és tu!..."

 

                      FIEL

 

Na luz do seu olhar tão lânguido, tão doce,

        Havia o que quer que fosse

        D’um íntimo desgosto:

Era um cão ordinário, um pobre cão vadio

Que não tinha coleira e não pagava imposto.

Acostumado ao vento e acostumado ao frio,

Percorria de noite os bairros da miséria

        Á busca dum jantar. 

E ao ver surgir da lua a palidez etérea,

O velho cão uivava uma canção funérea,

Triste como a tristeza ossiânica do mar.

Quando a chuva era grande e o frio inclemente,

Ele ia-se abrigar às vezes nos portais;

E mandando-o partir, partia humildemente,

Com a resignação nos olhos virginais.

Era tranquilo e bom como as pombinhas mansas; 

Nunca ladrou dum pobre à capa esfarrapada:

E, como não mordia as tímidas crianças,

As crianças então corriam-no a pedrada.

 

Uma vez casualmente, um mísero pintor

        Um boémio, um sonhador,

Encontrara na rua o solitário cão;

O artista era uma alma heróica e desgraçada,

Vivendo num escura e pobre água furtada,

Onde sobrava o génio e onde faltava o pão.

Era desses que tem o rubro amor da glória, 

        O grande amor fatal,

Que umas vezes conduz às pompas da vitória,

E que outras vezes leva ao quarto do hospital.

 

E ao ver por sobre o lodo o magro cão plebeu,

Disse-lhe: - “O teu destino é quase igual ao meu:

Eu sou como tu és, um proletário roto,

Sem família, sem mãe, sem casa, sem abrigo;

E quem sabe se em ti, ó velho cão de esgoto,

Eu não irei achar o meu primeiro amigo!...”

 

No céu azul brilhava a lua etérea e calma;

E do rafeiro vil no misterioso olhar

Via-se o desespero e ânsia d’uma alma,

Que está encarcerada, e sem poder falar.

O artista soube ler naquele olhar em brasa

A eloquente mudez dum grande coração;

E disse-lhe: - “Fiel, partamos para casa:

Tu és o meu amigo, e eu sou o teu irmão. –“

 

E viveram depois assim por longos anos,

Companheiros leais, heróicos puritanos,

Dividindo igualmente as privações e as dores.

Quando o artista infeliz, exausto e miserável,

Sentia esmorecer o génio inquebrantável

            Dos fortes lutadores;

Quando até lhe acudiu às vezes a lembrança

Partir com uma bala a derradeira esp’rança,

Por um ponto final no seu destino atroz;

Nesse instante do cão os olhos bons, serenos,

Murmura-lhe: - Eu sofro, e a gente sofre menos,

Quando se vê sofrer também alguém por nós. –

 

Mas um dia a Fortuna, a deusa milionária,

Entrou-lhe pelo quarto, e disse alegremente:

“Um génio como tu, vivendo como um pária,

Agrilhoado da fome à lúgubre corrente!

Eu devia fazer-te há muito esta surpresa,

Eu devia ter vindo aqui p’ra te buscar;

Mas moravas tão alto! E digo-o com franqueza

Custava-me subir até ao sexto andar.

Acompanha-me; a glória há de ajoelhar-te aos pés!...”

E foi; e ao outro dia as bocas das Frinés

Abriram para ele um riso encantador;

A glória deslumbrante iluminou-lhe a vida

Como bela alvorada esplêndida, nascida

A toques de clarim e a rufos de tambor!

 

            Era feliz. O cão

Dormia na alcatifa à borda do seu leito,

E logo de manhã vinha beijar-lhe a mão,

Ganindo com um ar alegre e satisfeito.

Mas aí! O dono ingrato, o ingrato companheiro,

Mergulhado em paixões, em gozos, em delícias,

Já pouco tolerava as festivas carícias

            Do seu leal rafeiro.

 

Passou-se mais um tempo; o cão, o desgraçado,

        Já velho e no abandono,

Muitas vezes se viu batido e castigado

Pela simples razão de acompanhar seu dono.

Como andava nojento e lhe caíra o pelo,

Por fim o dono até sentia nojo ao vê-lo,

E mandava fechar-lhe a porta do salão.

Meteram-no depois num frio quarto escuro,

E davam-lhe a jantar um osso branco e duro,

Cuja carne servira aos dentes d’outro cão.

 

E ele era como um roto, ignóbil assassino,

Condenado à enxovia, aos ferros, às galés:

Se se punha a ganir, chorando o seu destino,

Os exibia ao sol as podridões obscenas,

Poisava-lhe no dorso o causticante enxame

criados brutais davam-lhe pontapés.

Corroera-lhe o corpo a negra lepra infame.

Quando exibia ao sol as podridões obscenas,

Poisava-lhe no dorso o causticante enxame

            Das moscas das gangrenas.

 

Até que um dia, enfim, sentindo-se morrer,

Disse ”Não morrerei ainda sem o ver;

A seus pés quero dar meu último gemido...”

Meteu-se-lhe no quarto, assim como um bandido.

E o artista ao entrar viu o rafeiro imundo,

            E bradou com violência:

“Ainda por aqui o sórdido animal!

É preciso acabar com tanta impertinência,

Que esta besta está podre, e vai cheirando mal!”

E, pousando-lhe a mão cariciosamente,

Disse-lhe com um ar de muito bom amigo:

“Ó meu pobre Fiel, tão velho e tão doente,

Ainda que te custe anda daí comigo.”

 

E partiram os dois. Tudo estava deserto.

A noite era sombria; o cais ficava perto;

E o velho condenado, o pobre lazarento,

            Cheio de imensas mágoas

Sentiu junto de si um pressentimento

O fundo soluçar monótono das águas.

 

Compreendeu enfim! Tinha chegado à beira

            Da corrente. E o pintor,

Agarrando uma pedra atou-lh’a na coleira,

Friamente cantando uma canção d’amor.

 

E o rafeiro sublime, impassível, sereno,

Lançava o grande olhar às negras trevas mudas

Com aquela amargura ideal do Nazareno

Recebendo na face o ósculo de Judas.

Dizia para si: “È o mesmo, pouco importa.

Cumprir o seu desejo é esse o meu dever:

Foi ele que me abriu um dia a sua porta:

Morrerei, se lhe dou com isso algum prazer.”

 

            Depois, subitamente

O artista arremessou o cão na água fria.

E ao dar-lhe o pontapé caiu-lhe na corrente

            O gorro que trazia

Era uma saudosa, adorada lembrança

            Outrora concedida

Pela mais caprichosa e mais gentil criança,

Que amara, como se ama uma só vez na vida.

 

E ao recolher à casa ele exclamava irado:

“E por causa do cão perdi o meu tesouro!

Andava bem melhor se o tenho envenenado!

Maldito seja o cão! Dava montanhas d’oiro,

Dava a riqueza, a glória, a existência, o futuro,

Para tornar a ver o precioso objecto,

Doce recordação daquele amor tão puro.”

E deitou-se nervoso, alucinado, inquieto.

            Não podia dormir.

Até nascer da manhã o vivido clarão,

Sentiu bater à porta! Ergueu-se e foi abrir.

Recuou cheio de espanto: era o Fiel, o cão,

Que voltava arquejante, exânime, encharcado,

A tremer e a uivar no último estertor,

 

Caindo-lhe da boca, ao tombar fulminado,

            O gorro do pintor!

 

        A Musa em Férias (Idílios e Sátiras)

 

 

            A Benção da Locomotiva

 

                

A obra está completa. A máquina flameja,

Desenrolando o fumo em ondas pelo ar.

Mas, antes de partir mandem chamar a Igreja,

Que é preciso que um bispo a venha baptizar.


Como ela é concerteza o fruto de Caím,

A filha da razão, da independência humana,

Botem-lhe na fornalha uns trechos em latim,

E convertam-na à fé Católica Romana.


Devem nela existir diabólicos pecados,

Porque é feita de cobre e ferro; e estes metais

Saem da natureza, ímpios, excomungados,

Como saímos nós dos ventres maternais!


Vamos, esconjurai-lhes o demo que ela encerra,

Extraí a heresia ao aço lampejante!

Ela acaba de vir das forjas d'Inglaterra,

E há-de ser com certeza um pouco protestante.


Para que o monstro corra em férvido galope,

Como um sonho febril, num doido turbilhão,

Além do maquinista é necessário o hissope,

E muita teologia... além de algum carvão.


Atirem-lhe uma hóstia à boca fumarenta,

Preguem-lhe alguns sermões, ensinem-lhe a rezar,

E lancem na caldeira um jorro d'água benta,

Que com água do céu talvez não possa andar.

 

 

          Como se faz um monstro

 
 

I

Ele era nesse tempo uma criança loira

Vivendo na abundância agreste da lavoira,

Ao vento, à chuva, ao sol, pastoreando os gados,

Deitando-se ao luar nas pedras dos eirados,

Atravessando à noite os solitários montes,

Dormindo a boa sesta ao pé das claras fontes,

Trepando aos pinheirais, às fragas, aos barrancos,

No rijo e negro pão cravando os dentes brancos,

Radioso como a aurora e bom como a alegria.

Quando no azul do céu cantava a cotovia,

Aos primeiros clarões vibrantes da alvorada

Transportava ao casebre o leite da manada,

Acordando, a assobiar e a rir pelos caminhos,

Os lebréus nos portais e as aves nos seus ninhos.

E à tarde quando o Sol, extraordinário Rubens,

Na fantasmagoria esplêndida das nuvens,

Colorista febril, lança, desfaz, derrama

O topázio, o rubi, a prata, o oiro, a chama,

Ele ia então sozinho, alegre, intemerato,

Conduzindo a beber ao trémulo regato,

A golpes de verdasca e gritos estridentes,

Num ruidoso tropel os grandes bois pacientes.

O seu olhar azul de limpidez virtuosa,

Onde brilhava a audácia heróica e valorosa,

A candura infantil e a inteligência rara,

O timbre da sua voz imperiosa e clara,

A linha do seu corpo altivamente recta,

Tudo lhe dava o ar soberbo dum atleta

Em miniatura.

II


Um dia o pai, um bravo aldeão,

Chamou-o ao pé de si, e disse-lhe:«João:

À força de trabalho e à força de canseiras,

A moirejar no monte e a levar gado às feiras,

Consegui ajuntar ao canto do baú

Alguns pintos. Vocês são dois rapazes; tu,

Além de ser mais novo, és mais inteligente.

Vou botar-te ao latim; quero fazer-te gente.

Hás-de me dar ainda um grande pregador.

Hoje padre é melhor talvez que ser doutor.

Aquilo é grande vida; é vida regalada.

Olha, sabes que mais? manda ao diabo a enxada.

Aquilo é que é vidinha! aquilo é que é descanso!

Arrecada-se a côngrua, engrola-se o ripanço,

Arranja-se um sermão aí com quatro tretas,

Vai-se escorropichando o vinho das galhetas,

E a missa seis vinténs e doze os baptizados.

Depois, independente e sem nenhuns cuidados!

Olha, João, vê tu o nosso padre-cura:

É, sem tirar nem pôr, uma cavalgadura,

Vi-o chegar aqui mais roto que os ciganos;

Pois tem feito um casão em meia dúzia d'anos.

Isto é desenganar; padres sabem-na toda...

É o sermão, é a missa, é o enterro, é a boda.

É pinga da melhor, e tudo quanto há!

Quando o abade morrer hás-de vir tu p'ra cá.

Despacha-te o doutor nas cortes; quando não

Votamos contra ele, e foi-se-lhe a eleição.

Mas que é isso, rapaz? Nada de choradeira!

É tratar da merenda, e quinta ou sexta-feira

Toca pró seminário. Eu quero ir para a cova

Só depois de te ouvir cantar a missa nova».


III


Numa tarde d'Outono, a sonolento trote

Um macho conduzia em cima do albardão,

Já coluna da Igreja, o novo sacerdote,

O muitíssimo ilustre e digno padre João.

Ao entrarem na aldeia os dois irracionais,

Dos foguetes ao grande e jubiloso estrépito

Um velho recebeu nos braços paternais,

Em vez do alegre filho, um monstro já decrépito

Que acabava de vir das jaulas clericais.

Que transfiguração! Que radical mudança!

Em lugar da inocente, angélica criança,

Voltava um chimpanzé, estúpido e bisonho,

Com o ar de quem anda alucinadamente

Preso nas espirais diabólicas dum sonho.

Seu corpo juvenil, robusto e florescente,

Vergava para o chão, exausto de cansaço:

Os dogmas são de bronze, e a lã duma batina

Já vai pesando mais que as armaduras d'aço.

A ignorância profunda, a estupidez suína,

A luxúria d'igreja, ardente, clandestina,

O remorso, o terror, o fanatismo inquieto,

Tudo isto perpassava em turbilhão confuso

Na atonia cruel daquele hediondo aspecto,

Na morna fixidez daquele olhar obtuso.

Metida nas prisões escuras de Loiola,

A sua alma infantil, não tendo luz nem ar,

Foi como os rouxinóis, que dentro da gaiola

Perdem toda a alegria e morrem sem cantar.

 


IV


Como ninguém ignora, os sórdidos palhaços

Compram, roubam às mães as loiras criancinhas,

Torcem-lhes o pescoço, as mãos, os pés, os braços,

Transformam-lhes num junco elástico as espinhas,

E exibem-nas depois nos palcos das barracas,

Dando saltos mortais e devorando facas

Ante o espanto imbecil da ingénua multidão;

E para lhes cobrir a lividez plangente

Costumam-lhes pintar carnavalescamente

Na face de alvaiade, um rir de vermelhão.

Também o jesuitismo hipócrita-romano,

Palhaço clerical, anda pelos caminhos

A comprar, a furtar, assim como um cigano,

As crianças às mães, os rouxinóis aos ninhos.

Vão levá-las depois ao negro seminário,

Às terríveis galés, ao sacro matadoiro,

E escondem-nas da luz, assim como o usurário

Esconde também dela os seus punhados d'oiro.

Dentro da estupidez e da superstição,

Casamata da fé, guardam-lhes a razão,

A análise, esse forte e venenoso fluido,

Que, andando em liberdade, ao mínimo descuido

Poderia estoirar com trágica explosão.

O que o palhaço faz ao corpo da criança,

Fazem-lho à alma, até que dela reste enfim,

Em lugar do histrião que nas barracas dança,

O pobre missionário, o inútil manequim,

O histrião que nos prega a bem-aventurança

A murros de missal e a roncos de latim.

As almas infantis são brandas como a neve,

São pérolas de leite em urnas virginais:

Tudo quanto se grava e quanto ali se escreve,

Cristaliza em seguida e não se apaga mais.

Desta forma, consegue o astucioso clero

Transformar, de repente, uma criança loira

Num pássaro nocturno estúpido e sincero.

É abrir-lhe na cabeça a golpes de tesoira

A marca industrial do fabricante  um zero!




          AOS SIMPLES


Ó almas que viveis puras, imaculadas,

Na torre de luar da graça e da ilusão,

Vós que inda conservais, intactas, perfumadas,

As rosas para nós há tanto desfolhadas

Na aridez sepulcral do nosso coração;

Almas, filhas da luz das manhãs harmoniosas,

Da luz que acorda o berço e que entreabre as rosas,

Da luz, olhar de Deus, da luz, benção d'amor,

Que faz rir um nectário ao pé de cada abelha,

E faz cantar um ninho ao pé de cada flor;

Almas, onde resplende, almas onde se espelha

A candura inocente e a bondade cristã,

Como um céu d'Abril o arco da aliança,

Como num lago azul a estrela da manhã;

Almas, urnas de fé, de caridade e esp'rança,

Vasos d'ouro contendo aberto um lírio santo,

Um lírio imorredouro, um lírio alabastrino,

Que os anjos do Senhor vêm orvalhar com pranto,

E a piedade florir com seu clarão divino;

Almas que atravessais o lodo da existência,

Este lodo perverso, iníquo, envenenado,

Levando sobre a fonte o esplendor da inocência,

Calcando sob os pés o dragão do pecado;

Benditas sejas vós, almas que est'alma adora,

Almas cheias de paz, humildade e alegria,

Para quem a consciência é o sol de toda a hora,

Para quem a virtude é o pão de cada dia!

Sois como a luz que doura as pedras dum monturo,

Ficando sempre branca a sorrir e a cantar;

E tudo quanto a mim há de belo ou de puro,

- Desde a esmola que dou à prece que eu murmuro

É vosso: fostes vós o meu primeiro altar,

Lá da minha distante e encantadora infância,

Desse ninho d'amor e saudade sem fim,

Chega-me ainda a vossa angélica fragância

Como uma harpa eólia a cantar a distância,

Como um véu branco ao longe inda a acenar por mim!

...............................................................................

...............................................................................

Minha mãe, minha mãe! Ai que saudade imensa,

Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti.

Caía mansa a noite; e andorinhas aos pares

Cruzavam-se voando em torno dos seus lares,

Suspensos do beiral da casa onde eu nasci.

Era a hora em que já sobre o feno das eiras

Dormia quieto e manso o impávido lebreu.

Vinham-nos da montanha as canções das ceifeiras,

E a Lua branca, além, por entre as oliveiras,

Como a alma dum justo, ia em triunfo ao Céu!

E, mãos postas, ao pé do altar do teu regaço,

Vendo a Lua subir, muda, alumiando o espaço,

Eu balbuciava a minha infantil oração,

Pedindo ao Deus que está no azul do firmamento

Que mandasse um alívio a cada sofrimento,

Que mandasse uma estrela a cada escuridão.

Por todos eu orava e por todos pedia.

Pelos mortos no horror da terra negra e fria,

Por todas as paixões e por todas as mágoas

Pelos míseros que entre os uivos das procelas

Vão em noite sem lua e num barco sem velas

Errantes através do turbilhão das águas.

O meu coração puro, imaculado e santo

Ia ao trono de Deus pedir, como inda vai,

Para toda a nudez um pano do seu manto,

Para toda a miséria o orvalho do seu pranto

E para todo o crime o seu perdão de Pai!

...................................................................]

...................................................................

A minha mãe faltou-me era eu pequenino,

Mas da sua piedade o fulgor diamantino

Ficou sempre abençoando a minha vida inteira,

mo junto dum leão um sorriso divino,

Como sobre uma for um ramo de oliveira!


                     * * *


Ó crentes, como vós, no íntimo do peito

Abrigo a mesma crença e guardo o mesmo ideal.

O horizonte é infinito e o olhar humano é estreito:

Creio que Deus é eterno e que a alma é imortal.


Toda a alma é clarão e todo o corpo é lama.

Quando a lama apodrece inda o clarão cintila:

Tirai o corpo - e fica uma língua de chama

Tirai a alma - e resta um fragmento d'argila.


E para onde vai esse clarão? Mistério

Não sei Mas sei que sempre há-de arder e brilhar,

Quer tivesse incendiado o crânio de Tibério,

Quer tivesse aureolado a fronte de Joana d'Arc.


Sim, creio que depois do derradeiro sono

Há-de haver uma treva e há-de haver uma luz

Para o vício que morre ovante sobre um trono,

Para o santo que expira inerme numa cruz.


Tenho uma crença firme, uma crença robusta,

Num Deus que há-de guardar por sua própria mão

Numa jaula de ferro a alma de Locusta,

Num relicário d'ouro a alma de Platão.


Mas também acredito, embora isso vos pese,

E me julgueis talvez o maior dos ateus,

Que no Universo inteiro ha uma só diocese

E uma só catedral com um só bispo - Deus.


E muito embora a vossa igreja se contriste

E a excomunhão papal nos abrase e destrua,

A análise é feroz como uma lança em riste

E a verdade cruel como uma espada nua,


Cultos, religiões, bíblias, dogmas, assombros,

São como a cinza vã que sepultou Pompeia.

Exumemos a fé desse montão de escombros,

Desentulhemos Deus dessa aluvião de areia.


E um dia a humanidade inteira, oceano em calma,

Há-de fazer, na mesma aspiração reunida,

Da razão e da fé os dois olhos da alma,

Da verdade e da crença os dois pólos da vida.


A crença é como o luar que nas trevas flutua;

A razão é do Céu o esplêndido farol:

Para a noite da morte é que Deus nos deu Lua

Para o dia da vida é que Deus fez o Sol.


                     * * *


Mas, ai!, eu compreendo os martírios secretos

Do pobre camponês, já quase secular,

Que vê tombar por terra o seu ninho de afectos,

A casa onde nasceu o pai, e onde seus netos

Lhe fechariam, morto, o escurecido olhar.

Compreendo o pavor e a lividez tremente

De quem em noite má, caliginosa e fria

Atravessa a montanha à luz de um facho ardente

E uma rajada vem alucinadamente

Apagar-lho com asa atlética e sombria,

Deixando-o fulminado e quase sem sentidos

A ouvir o ulular das feras e os bramidos

Do ciclone, que explui rouco do sorvedouro,

E se enrosca furioso aos plátanos partidos

A estrangulá-los como uma jibóia um touro.

Compreendo a agonia, o desespero insano

Do náufrago na rocha, entre o abismo do oceano,

Vendo rolar, rugir os glaucos vagalhões

Como uma cordilheira hercúlea de montanhas,

Com jaulas colossais de bronze nas entranhas,

E um domador lá dentro a chicotear trovões.

........................................................................

........................................................................


O vosso facho, o vosso abrigo, o vosso porto,

É umDeus  que para nós há muito que está morto,

E que inda imaginais no entanto imortal.

Vivei e adormecei nessa crença ilusória,

Já não podeis transpor os mil anos da história

Que vão do vosso credo absurdo ao nosso ideal.

Vivei e adormecei nessa ilusão sagrada,

Fitando até morrer os olhos de Jesus,

Como o efémero vão que dura um quase nada,

Que nasce de manhã num raio de alvorada,

E expira ao pôr do Sol noutro raio de luz.

Eu bem sei que essa crença ignorante e sincera,

Não é a que ilumina as bandas do Porvir.

Mas vós sois o Passado, e a crença é como a hera

Que sustenta e dá ainda um ar de Primavera

Aos velhos torreões góticos a cair.

Sim, essa crença é um erro, uma ilusão, é certo;

Mas triste de quem vai pelo areal deserto

Vagabundo, esfomeado e nu como Caim,

Sem nunca ver ao longe os palácios radiantes

Duma cidade d'ouro e mármore e diamantes

No quimérico azul dessa amplidão sem fim!

Quem há-de arrancar pois do seu piedoso engaste

O vosso ingénuo ideal, ó trémulos velhinhos,

Se a quimera é uma rosa e a existência uma haste,

Rosa cheia d'aroma e haste cheia de espinhos!

Quem vos há-de cortar a flor da vossa esp'rança,

Quem vos há-de apagar a angélica visão,

Se essa luz para vós é como uma criança

Que guia numa estrada um cego pela mão!

Quem vos há-de acordar desse sonho encantado?!

Quem vos há-de mostrar a evidência cruel?!

Ah!, deixemos a ave ao ramo já quebrado,

E deixemos fazer ao enxame dourado

No tronco que está morto o seu favo de mel!

Ó velhos aldeões, exaustos de fadiga,

Que andais de sol a sol na terra a mourejar,

Roubar-vos de voss'alma a vossa crença antiga

Seria como quem roubasse a uma mendiga

As três achas que leva à noite para o lar!

Oh, não! Guardai-a bem essa crença d'outrora;

É ela quem vos dá a paz benigna e santa,

Como a paz dum vergel inundado d'aurora,

Onde o trabalho ri e onde a miséria canta.

Guardai-a, sim, guardai! E quando a morte em breve

Vos entre na choupana esquálida e feroz,

A agonia será bem rápida e leve,

Porque um anjo de Deus, mais alvo que a neve,

Há-de estender sorrindo as asas sobre vós.

E vós conhecereis em seu olhar materno

Que é o anjo que embalou vosso sono infantil

E que hoje vem do Céu mandado pelo Eterno

Para sorrir na morte ao vosso branco Inverno,

Como sorriu no berço ao vosso claro Abril.

E ao pender-vos gelada a fronte alabastrina

Irá levar a Deus o vosso coração

Tão manso e virginal, tão novo e tão perfeito,

Que Deus há-de beijá-lo e aquecê-lo ao peito,

Como se acaso fosse uma pomba divina,

Que viesse cair-lhe, exânime, na mão!

 
 

                    PARASITAS


 

No meio duma feira, uns poucos de palhaços

Andavam a mostrar, em cima dum jumento

Um aborto infeliz, sem mãos, sem pés, sem braços,

Aborto que lhes dava um grande rendimento.


Os magros histriões, hipócritas, devassos,

Exploravam assim a flor do sentimento,

E o monstro arregalava os grandes olhos baços,

Uns olhos sem calor e sem entendimento.


E toda a gente deu esmola aos tais ciganos:

Deram esmola até mendigos quase nus.

E eu, ao ver este quadro, apóstolos romanos,


Eu lembrei-me de vós, funâmbulos da Cruz,

Que andais pelo universo há mil e tantos anos,

Exibindo, explorando o corpo de Jesus.

 

 

                            O PAPÃO


As crianças têm medo à noite, às horas mortas,

Do papão que as espera, hediondo, atrás das portas,

Para as levar no bolso ou no capuz dum frade.

Não te rias da infância, ó velha humanidade,

Que tu também tens medo ao bárbaro papão,

Que ruge pela boca enorme do trovão,

Que abençoa os punhais sangrentos dos tiranos,

Um papão que não faz a barba há seis mil anos,

E que mora, segundo os bonzos têm escrito,

Lá em cima, detrás da porta do infinito!