15-8-2000

 

DAVID MOURÃO-FERREIRA


(24 Fev 1927 - 16 Jun 1996)

 

POEMAS:

 

Escada sem corrimão

Canção_primaveril

É_quando_estás_de_joelhos...

Momento

Amor

 

 

ESCADA SEM CORRIMÃO

 

É uma escada em caracol

E que não tem corrimão.

Vai a caminho do Sol

Mas nunca passa do chão.

 

 

Os degraus, quanto mais altos,

Mais estragados estão,

Nem sustos nem sobressaltos

servem sequer de lição.

 

Quem tem medo não a sobe

Quem tem sonhos também não.

Há quem chegue a deitar fora

O lastro do coração.

 

Sobe-se numa corrida.

Corre-se p'rigos em vão.

Adivinhaste: é a vida

A escada sem corrimão.

 

Ouça esta poesia na bela voz de Camané (música de Reinaldo Varela)  no CD "Esta coisa da alma", editado pela EMI - Valentim de Carvalho.

 

 

Canção primaveril

 

 

Anda no ar a excitação

de seios súbito exibidos

à torva luz de um alçapão,

por onde os corpos rolarão,

mordidos!

 

Ou é um deus, ou foi a Morte

que nos vestiu este torpor;

e a Primavera é um chicote,

abrindo as veias e o decote

ao meu amor!

 

Esqueço que os dedos têm ossos:

é só de sangue esta carícia;

apenas nervos os pescoços...

Mas nos teus olhos, nos meus olhos,

a luz da morte brilha.

 

 

 

É quando estás de joelhos...

 

 

É quando estás de joelhos

que és toda bicho da Terra

toda fulgente de pêlos

toda brotada de trevas

toda pesada nos beiços

de um barro que nunca seca

nem no cântico dos seios

nem no soluço das pernas

toda raízes nos dedos

nas unhas toda silvestre

nos olhos toda nascente

no ventre toda floresta

em tudo toda segredo

se de joelhos me entregas

sempre que estás de joelhos

todos os frutos da Terra.

 

 

 

Momento

 

 

Chegado o momento

em que tudo é tudo

dos teus pés ao ventre

das ancas à nuca

ouve-se a torrente

de um rio confuso

Levanta-se o vento

Comparece a lua

Entre línguas e dentes

este sol nocturno

Nos teus quatro membros

de curvos arbustos

lavra um só incêndio

que se torna muitos

Cadente silêncio

sob o que murmuras

Por fora por dentro

do bosque do púbis

crepitam-me os dedos

tocando alaúde

nas cordas dos nervos

a que te reduzes

Assim o momento

em que tudo é tudo

Mais concretamente

água fogo música

 

 

Amor

 

Cala-te, a luz arde entre os lábios,

e o amor não contempla, sempre

o amor procura, tacteia no escuro,

essa perna é tua?, esse braço?,

subo por ti de ramo em ramo,

respiro rente á tua boca,

abre-se a alma à língua, morreria

agora se mo pedisses, dorme,

nunca o amor foi fácil, nunca,

também a terra morre.