19-12-2001

 

VITORINO NEMÉSIO

1901 - 1978

 

 

 

 

No final dos anos 80 (algures entre 1975 e 1979), tinha acabado de ler (com muito agrado) “Mau Tempo no Canal”, de Vitorino Nemésio, quando a RTP, num concurso qualquer de que me não lembro o nome, pediu sugestões de questões sobre o mesmo livro. Enviei um postal, sugerindo que se perguntasse aos concorrentes “Qual a origem do nome da cidade da Horta?”. A minha pergunta foi sorteada e recebi como presente uma colecção completa das obras de Alexandre Herculano, das Edições Bertrand. A cidade da Horta foi fundada pelo flamengo Joss Van Huertere, que teve a concessão da ilha do Faial em 1468 e que deu o nome à cidade. Eis a história do meu primeiro contacto com Vitorino Nemésio, que entretanto, começava a aparecer com regularidade na RTP, nas charlas com o título "Se bem me lembro...". Comemora-se este ano o centenário do seu nascimento e, felizmente, o DN e o PUBLICO dedicaram-lhe bem elaborados dossiers, que aqui reproduzo.

 

           

              LINKS:

 

Wikipedia

 

Nemésio (1901-2001): um ilhéu do mundo

FELICIANA FERREIRA (Editora Opinião/Grande Reportagem


"Dou a minha última lição de professor na efectividade e em exercício, segundo a lei. Claro que a lei só tira o exercício ao funcionário: o homem exerce enquanto vive."


Com estas palavras, Vitorino Nemésio iniciou a sua última lição, proferida na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 9 de Dezembro de 1971.

Palavras sábias e certeiras, já que este açoriano de 13 gerações, poeta, ficcionista, professor, ensaísta e homem de afectos conturbados continuou a exercer a arte de comunicar até à sua morte, em 20 de Fevereiro de 1978.

Nome maior das letras portuguesas, autor deste "monumento" que é o romance Mau Tempo no Canal, impõe-se celebração condigna ao assinalarmos o centenário do seu nascimento. Assim, de hoje até quarta-feira, 19, o Diário de Notícias recordará Vitorino Nemésio nas suas páginas. E os laços do poeta a esta casa não são pequenos. A amizade com Augusto de Castro nasceu quando ambos viviam em Bruxelas, um, a exercer o cargo de embaixador, o outro de professor. No DN dos anos quarenta publicou Nemésio artigos vários, colaboração essa reforçada nos anos sessenta, no suplemento de Artes e Letras que então fazia parte do jornal. Prova desta ligação é o facto de ter sido o próprio Augusto de Castro a fazer-lhe o elogio quando Nemésio ocupou a cadeira de sócio efectivo da Academia das Ciências.

Homem das sete partidas, este ilhéu obcecado pelo mar fez-se ao mundo na vida e na arte. Correu terras enquanto homem, fez-se universal enquanto poeta.

"Quando penso no mar, o mar regressa / A linha do horizonte é um fio de asas / E o corpo das águas é luar; // De puro esforço, as velas são memória / E o porto e as casas / Uma ruga de areia transitória." Assim escreveu Nemésio num poema de O Bicho Harmonioso, intitulado "Correspondência ao Mar". E mais adianta acrescenta: "A certa forma que só teve em mim / Que onde ele acaba, o coração começa." A identificação entre o coração e a ilha não pode ser mais clara.

Pouco antes de morrer, Nemésio pediu ao filho para ser sepultado no cemitério de Santo António dos Olivais em Coimbra. Mas pediu mais: que os sinos tocassem o Aleluia em vez do dobre a finados. O seu pedido foi respeitado.

Nós atrevemo-nos a outro pedido. A melhor maneira de celebrar Nemésio é lê-lo. E é aqui que começam os escolhos. Percorram-se as livrarias e procurem-se os seus livros. Quem assim fizer verá que os exemplares escasseiam ou até nem constam dos escaparates. Pior do que a travessia do canal é a indiferença de quem deveria saber.

DN, 16-12-2001

 

CRONOLOGIA:

1901 - A 19 de Dezembro, nasce Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva, na Praia da Vitória, Ilha Terceira, Açores.

1912 - Inicia os estudos secundários no liceu de Angra.

1916 - Colabora no Eco Académico. Semanário dos Alunos do Liceu de Angra, desde o n.º 2 (13 de Fevereiro). Funda e dirige Estrela d'Alva. Revista Literária Ilustrada e Noticiosa, também em Angra do Heroísmo.

1918 - Conclui na Horta (Faial) o 5.º ano do liceu.

1919 - Inicia o serviço militar, como voluntário, em Infantaria, o que lhe proporciona a primeira viagem a Lisboa.

1921 - Em Lisboa, é redactor dos jornais A Pátria e A Imprensa de Lisboa e do Última Hora.

1922 - Conclui o liceu em Coimbra e inscreve-se na Faculdade de Direito. Trabalha como revisor na Imprensa da Universidade.

1923 - Ingressa na Maçonaria, na loja Revolta, de Coimbra. Morte do pai, a 7 de Abril. Colaboração na revista Bizâncio, de Coimbra. Primeira viagem a Espanha, com o Orfeão Académico: em Salamanca conhece Unamuno.

1924 - Abandona o curso de Direito e matricula-se na Faculdade de Letras, em Ciências Histórico-Geográficas. Com Afonso Duarte, António de Sousa, Branquinho da Fonseca, Gaspar Simões e outros, funda a revista Tríptico.

1925 - Opta definitivamente pelo curso de Filologia Românica. Surge o jornal Humanidade. Quinzenário de Estudantes de Coimbra, de que é redactor principal Vitorino Nemésio. Colaboram, entre outros, José Régio, João Gaspar Simões e António de Sousa.

1926 - A 12 de Fevereiro, casa com Gabriela Monjardino de Azevedo Gomes, de quem terá quatro filhos, a primeira das quais, Georgina, nasce em Novembro.

1927 - Funda e dirige, com Paulo Quintela, Cal Brandão e Sílvio Lima, Gente Nova. Jornal Republicano Académico.

1928 - Passa a colaborar na revista Seara Nova.

1929 - Início de correspondência com Miguel de Unamuno.

1930 - Nemésio colabora na Presença (n.º 27), Junho-Julho, e 29, Novembro-Dezembro), com textos poéticos. Em Outubro transfere-se para a Faculdade de Letras de Lisboa. Começa a pesquisa sobre Herculano que o ocupará ao longo da vida.

1931 - Licencia-se na Faculdade de Letras de Lisboa, após o que inicia ali o magistério, lecionando Literatura Italiana.

1933 - Começa a leccionar Literatura Espanhola (a par da Italiana) em Lisboa, na Faculdade de Letras.

1934 - Passa por Salamanca para se encontrar pessoalmente com Unamuno. Início de correspondência com Valery Larbaud. Inicia o desempenho das funções de chargé de cours na Universidade de Montpellier. Larbaud lerá os poemas franceses de Nemésio e proporcionar-lhe-á a chancela de um editor parisiense (Corrêa). Doutoramento em Letras, em Outubro, com A Mocidade de Herculano até à Volta do Exílio.

1935 - Colabora n'O Diabo com vários poemas.

1936 - Concorre a Professor Auxiliar da Faculdade de Letras.

1937 - Funda e dirige, em Coimbra, a Revista de Portugal (n.º 1, Outubro), em cujo editorial, não assinado, se afirma: "Não vamos traçar nenhum programa. O nosso melhor programa seriam vinte ou trinta anos de vida e de realizações de cultura universal e portuguesa." Radica-se na Bélgica e na Universidade Livre de Bruxelas lecciona, durante dois anos.

 1939 - O n.º 7 (Abril) da Revista de Portugal publica o primeiro fragmento do romance que virá a ter o título Mau Tempo no Canal ("Um ciclone nas Ilhas"). Regressa a Portugal, para ensinar na Faculdade de Letras de Lisboa.

1940 - Concorre ao lugar de Professor Catedrático da Universidade de Lisboa.

1941 - Colabora com um poema nos Cadernos de Poesia.

1942 - Colabora na revista de António Pedro, Variante, e na de Ruy Cinatti, Aventura.

1944 - É editada a primeira edição de O Mau Tempo no Canal. Colabora na revista de Carlos Queiroz, Litoral (n.º 1, Junho).

1945 - O Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências é atribuído a O Mau Tempo no Canal.

1946 - É colaborador regular no Diário Popular, com uma secção intitulada "Leitura Semanal".

1947 - Colabora na revista Vértice ("Arquipélago dos Picapaus", vol. IV, n.º 52, Novembro-Dezembro).

1952 - Primeira viagem ao Brasil, que se tornará um destino frequente para Nemésio. Dela resultam os primeiros estudos, crónicas e poemas brasileiros.

1955 - Viagem aos Açores, em Maio.

1956 - É Director, até 1958, da Faculdade de Letras de Lisboa, onde fora secretário de 1944 a 47.

1958 - Lecciona no Brasil (Baía, Ceará, Rio de Janeiro, etc.).

1960 - Intervém na reforma dos planos de estudos das Faculdades de Letras então projectada. Viagem a África, relacionada com os cursos de extensão universitária em Luanda e Lourenço Marques.

1963 - Efectua uma viagem à Holanda. É eleito sócio efectivo da Academia das Ciências de Lisboa.

1965 - Preside à Comissão Nacional do V Centenário de Gil Vicente, redigindo parte do programa das comemorações. Nova viagem ao Brasil. A Universidade Paul Valery, de Montpellier, doutora honoris causa o seu antigo leitor. Recebe o Prémio Nacional de Literatura pelo conjunto da obra.

1966 - A Biblioteca e Arquivo Distrital de Angra comemora os "50 Anos da Vida Literária de Vitorino Nemésio" com uma exposição bibliográfica e a realização de conferências.

1969 - Inicia uma colaboração regular na RTP, com o programa "Se bem me lembro", que o imporá como figura ímpar em matéria de comunicação audio-visual.

1970 - Inaugura as comemorações do centenário da Geração de 70 no Centro Cultural Português de Paris, da Fundação Calouste Gulbenkian.

1971 - A partir de Fevereiro, colabora regularmente na revista Observador. A 12 de Dezembo, profere a sua "Última lição" na Faculdade de Letras de Lisboa, onde ensinara durante quase quarente anos.

1974 - Recebe o Prémio Montagine, da Fundação Freiherr von Stein/Friedrich von Schiller, de Hamburgo. A Bertrand lança a primeira colectânea de estudos sobre a obra de Nemésio.

1975 - Colabora na Homenagem ao Prof. Aurélio Quintanilha, a quem dedicará Limite de Idade. A 11 de Dezembro, assume a direcção do jornal O Dia.

1977 - Coordenador nacional do centenário de Herculano.

1978 - A 20 de Fevereiro, morre em Lisboa, no Hospital da CUF, e será sepultado em Coimbra, no cemitério de Santo António dos Olivais. Publica-se o primeiro estudo em livro que lhe é exclusivamente consagrado: Vitorino Nemésio, a Obra e o Homem, de José Martins Garcia.

 

O homem e o escritor projectados no futuro

António Valdemar

Intelectual de grande prestígio, como escritor, poeta e professor universitário, Nemésio nasceu com o século XX e, também, viveu o século XX nas suas múltiplas transformações culturais, políticas e sociais. Remetemos os leitores para os factos e algumas minudências citados na sistematização cronológica de uma vida extensa e intensa e de uma resenha bibliográfica tão diversificada que publicamos nesta página de homenagem destinada a assinalar o centenário do nascimento.

Durante sucessivas décadas era muito reduzida a projecção da obra de Nemésio. Todavia, nos últimos trinta anos, verifica-se que declinou a popularidade que, anos e anos seguidos, impunha, vários escritores e poetas que, por um conjunto de circunstâncias, resvalaram para o esquecimento ou purgatório literário, enquanto Nemésio ganhou significativa audiência, em particular entre os jovens.

Daí Nemésio ser apontado pela crítica como o poeta português mais representativo deste século, depois de Fernando Pessoa. Dentro da modernidade não foi, todavia, um epígono de Pessoa. Na altura em que principiaram a surgir numerosas personalidades que se reclamavam íntimas,Nemésio em artigo de primeira página no Diário de Notícias, declarou que nunca com ele convivera, nem lhe falara pessoalmente. Isto apesar de conhecer a obra ortónima e heterónima de Pessoa e de, na Faculdade de Letras de Lisboa, ter sido o primeiro professor universitário a preencher com a Mensagem um concurso de provas públicas.

A problemática açoriana domina grande parte da criação de Nemésio. De todos os títulos, o que teve maior audiência nacional e internacional destaca-se Mau Tempo no Canal, obra de referência obrigatória de literatura portuguesa do século XX. Decorre nas ilhas do Faial, do Pico, de São Jorge e da Terceira. Todavia, pela estrutura narrativa, amplitude de concepção e forte carga simbólica, o romance transpõe o plano regional e nacional para se integrar numa dimensão universal.

Além da ficção, Nemésio na poesia, na crónica, no ensaio e na biografia voltou a aprofundar a realidade açoriana nos seus diferentes aspectos. Abrangeu, contudo, outras regiões e outros temas nacionais e estrangeiros, com especial incidência na Europa e no Brasil. Por vezes confronta-nos com a erudição compacta, a pesquisa aturada, a fim de reconstituir e analisar figuras, épocas, civilizações e culturas. É, por exemplo, o caso de Herculano, que tornou vivo e definiu como "Portugal de alto a baixo, no que tem de forte e terroso".

Sem dissociar, neste contexto, uma personalidade de inesgotável calor humano, a imagem de Nemésio ressalta nas crónicas e pequenos ensaios, nos livros feitos de "papéis avulsos" escritos "sob várias pressões" no que classificou o seu "jornal" "tanto no sentido de diário íntimo, como de uma espécie de periódico pessoal hospedado em folhas alheias".

Neles se depara, com toda a autenticidade e a par de uma esmagadora bagagem cultural, um forte poder imaginativo e um testemunho de experiências pessoais e confidências de amigos. Quase sempre numa perspectiva de indagação do homem e do seu comportamento na sociedade. Qualquer que fosse a perspectiva, reflectia a ansiedade do seu espírito e sensibilidade, em permanente mobilização para todos os domínios do conhecimento e um humanismo aberto à esperança.

DN, 16-12-2001 

 

O sorriso de Marga

                   LUIS FAGUNDES DUARTE 

 

Quando foi internado no hospital onde haveria de morrer, Vitorino Nemésio tinha em mãos o minucioso trabalho de cópia de um conjunto importante de poemas escritos entre 28 de Março de 1973 e 14 de Maio de 1977 (circulando então o poeta por Lisboa e arredores, Nice, Barcelona e Açores) para o livro que haveria de chamar-se Caderno de Caligraphia e que ficaria inédito. O livro era dedicado a D. Margarida Victória, Marquesa de Jácome Correia (Ponta Delgada, 31-3-1919 - Lisboa, 21-7-1996) - e todos os poemas que o constituem são poemas de amor.

Os contornos da história deste livro são tão imprecisos quanto o foram os amores do poeta e da sua inspiradora: para os traçar, teremos que nos limitar às referências pontuais feitas pelo poeta nos próprios textos, às datas e locais de composição (que muitas vezes não são de fiar em Nemésio, que não raro os acrescentava a posteriori, de memória, quase como se fossem postiços de uma ficção) - e à memória de D. Margarida Victória que, retendo embora factos isolados sobre esta matéria, era totalmente arredia a situá-los e a relacioná-los com precisão no tempo.

 

 

Segundo me confidenciou a própria Margarida Victória, nos últimos tempos, Nemésio entretivera-se a copiar, aos serões, na casa da Rodrigo da Fonseca, para dois caderninhos de recolha de autógrafos, num jeito de adolescente apaixonado, os poemas cujos originais, anos depois, eu iria encontrar - entre cartas, postais, notas de viagem, apontamentos vários e telegramas, da mão de Nemésio ou por ele assinados e dirigidos ou dedicados a D. Margarida -, nos mais diversos estados de acabamento genético, alguns deles já dactilografados e com aspecto de original para tipografia, para além de uma série de outros poemas soltos e ainda de dois envelopes com poemas, um deles com a indicação autógrafa "para copiar", e o outro, classificado como "secreto" pela mão do autor, que continha diversos textos de cariz erótico; a ligar todos estes documentos, referências explícitas, sempre, a D. Margarida, seja pelo nome próprio, seja por nomes poéticos usados nos poemas dos cadernos - "Marga", "Macaca de Fogo", "Marquesinha", etc. -, seja ainda pela designação "Filha de Ayres Correia" (o pai de Margarida Victória) ou por referências a São Miguel e à relação de D. Margarida com esta ilha. Em vários dos originais encontram-se indicações autógrafas como "album" ou "para o livrinho" que, ligadas a uma outra, bastante mais explícita, "P.ª; o novo "album caligráfico" da menina Margarida Victória. [O seu menor criado] Vitorino Nemésio" inscrita na margem superior de uma cópia de carbono do dactiloscrito do poema Oh Ilha de São Miguel, [Verde em bagacina escura], devem ser interpretadas como referidas a este livro. Os originais autógrafos integram actualmente, uns, o "Fundo Jácome Correia", e outros, o espólio do próprio escritor, ambos depositados na Biblioteca Nacional. Dos 113 poemas que até ao momento consegui identificar e reunir como claramente destinados a este livro, Nemésio apenas teve tempo de copiar e arrumar 57; mas, ainda segundo D. Margarida, o poeta terá manifestado preocupação, já no leito de morte, pela não publicação do livro, e terá designado Natália Correia como a pessoa mais indicada para se ocupar da preparação do original.

Mas, afinal, de que falamos quando falamos de Caderno de Caligraphia? Para já, referimo-nos a dois vulgares cadernos de recolha de autógrafos, que poderão ser observados na exposição Rotação da Memória, actualmente disponível na Biblioteca Nacional; o primeiro deles está totalmente preenchido por 53 poemas copiados pela mão de Nemésio, ostenta na folha de rosto, em letra desenhada e em grafia estilística, o título Caderno de Caligraphia Pertencente à menina Margarida Victória Q. lhe ofereçe o victorino nemésio, e a data Lisboa, 29 de Março de 1973, que é também a do primeiro poema da colectânea, e termina com um Índice de primeiros versos; o segundo, que o autor nomeou 2.º Caderno de Caligraphia Offereçido à menina Margarida Victória pelo seu menor criado e bem querido Victorino Nemésio e datou de Lisboa, 4 de Junho de 1977, apenas contém quatro poemas, indicação clara de que o processo de cópia foi bruscamente interrompido. Os dois cadernos contêm diversos desenhos autógrafos, que funcionam em diálogo ou como ilustração de alguns dos poemas. Apenas um destes poemas havia sido entretanto publicado pelo próprio autor: Pedra de Canto, na Colóquio/Letras, n.º 35, de Janeiro de 1977. Dos restantes poemas não copiados para os cadernos, mas dedicados ou referidos a D. Margarida, também apenas um fora publicado: Torres de Ponta Delgada, que podemos encontrar no livro Sapateia Açoriana, Andamento Holandês e Outros Poemas, de 1976, sob o título "Alarme nas Ilhas".

Foi em Abril de 1986 que chegou ao meu conhecimento que D. Margarida Victória tinha em seu poder um livro inédito de poesia de Vitorino Nemésio - o último livro de Nemésio - pronto para ser editado, e que gostaria que eu, como filólogo e como açoriano, me ocupasse dele dado que, passados oito anos sobre a morte de Nemésio, Natália Correia ainda não fizera o que lhe fora solicitado nem, segundo ela própria me afirmaria, tencionava fazê-lo. Ficou então decidido avançar-se com a publicação do livro, iniciaram-se de imediato as negociações com a Bertrand, que então detinha os direitos de publicação da obra nemesiana, apontou-se para que o livro estivesse nas bancas por finais de 1986, e decidiu-se que os lucros da comercialização do livro seriam aplicados na constituição de uma bolsa a ser atribuída a um jovem investigador que quisesse dedicar-se à obra de Vitorino Nemésio.

Porém, surgiram alguns problemas relacionados com direitos de autor e de publicação, a que D. Margarida era legalmente alheia, a Bertrand perdeu os direitos de publicação, que foram adquiridos pela Imprensa Nacional, e o projecto de publicação do livro, uma vez mais, gorou-se. Agora, passados mais quinze anos, parece que se tornou finalmente possível a publicação deste livro pela Imprensa Nacional, como mais um volume de poesia das Obras Completas de Vitorino Nemésio - um livro que agora me sabe a duas vezes póstumo: póstumo de Nemésio, que o queria ver publicado em homenagem a D. Margarida Victória, a sua Marga; e póstumo de D. Margarida, que não teve a alegria de ver satisfeito aquele que, ainda pouco antes de morrer, me afiançava ser o derradeiro desejo do poeta Vitorino Nemésio, que ela ainda recordava como seu "pai, irmão e amante": a publicação deste Caderno de Caligraphia que, acrescido dos poemas que o autor não teve tempo de copiar, sairá em breve com o título ampliado para Caderno de Caligraphia &icom; Outros Poemas para Margarida Victória.

Só então terá seu registo legal a firma Margarida Victória Jácome Correia e Victorino Nemésio, Ficcionistas da Realidade, Realistas da Ficção, com oficina na Fajã de Baixo, Ilha de São Miguel, e no Porto Martim, Ilha Terceira - tal como consta de um projecto de cartão de visita saído do punho do próprio Nemésio e que D. Margarida, um dia, me mostrou com aquele sorriso que só quem a conheceu poderá entender. Deveria ser aquele o sorriso de Marga.

   

 

Julho de 2003:

Vitorino Nemésio, Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga,

OBRAS COMPLETAS, Vol. III, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,2003. ISBN  972-27-1200-4

Sobre este livro, ver página neste site, aqui

BIBLIOGRAFIA

 Poesia

Canto Matinal. Angra do Heroísmo, 1916.

Nave Etérea. Coimbra, 1922.

La Voyelle Promise. Coimbra, 1935.

O Bicho Harmonioso. Coimbra, 1938.

Eu, Comovido a oeste. Coimbra, 1940.

Festa Redonda - Décimas &icom; Cantigas de Terreiro Oferecidas ao Povo da Ilha Terceira por Vitorino Nemésio, Natural da Dita Ilha. Lisboa, 1950.

Nem Toda a Noite a Vida. Ática. Lisboa, 1953.

O Pão e a Culpa. Lisboa, 1955.

O Verbo e a Morte. Colecção Círculo de Poesia. Lisboa, 1959.

Poesia (1935-1940). Colecção Círculo de Poesia. Lisboa, 1961.

O Cavalo Encantado. Colecção Círculo de Poesia. Lisboa, 1963.

Andamento Holandês e Poemas Graves. Lisboa, 1964.

Ode ao Rio, ABC do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1965.

Vesperais (1916-1918). Angra do Heroísmo, 1966.

Canto de Véspera. Colecção Poesia e Verdade. Lisboa, 1966.

Violão do Morro (...) Seguido de Nove Romances da Bahia. Lisboa. 1968.

Limite de Idade. Colecção Auditorium (Livro e Disco). Lisboa, 1972.

Poemas Brasileiros. Lisboa, 1972.

Sapateia Açoriana, Lisboa, 1976.

Teatro

Amor de nunca mais, Angra do Heroísmo, 1920.

Ficção

Paço do Milhafre. Contos. Coimbra, 1924.

Varanda de Pilatos. Romance. Lisboa, 1926.

A Casa Fechada. Novelas. Coimbra, 1937.

Mau Tempo no Canal. Romance. Lisboa, 1944.

O Mistério do Paço do Milhafre. Contos. Lisboa, 1949.

Crónica e Viagens

O Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos, Lisboa, 1954.

Corsário das Ilhas - Notas de Viagens às Ilhas dos Açores. Lisboa, 1956.

Viagens ao Pé da Porta. Lisboa, 1965.

Caatinga e Terra Caída - Viagens no Nordeste e no Amazonas. Lisboa, 1968.

Jornal do Observador. Lisboa, 1973.

Era do Átomo - Crise do Homem.
Lisboa, 1976.

 Biografia e Crítica

Sob os Signos de agora - Temas Portugueses e Brasileiros. Coimbra, 1932.

A Mocidade de Herculano até à Volta do Exílio (1810-1832). Lisboa, 1934.

Isabel Aragão, Rainha Santa, Coimbra, 1936.

Relações Francesas do Romantismo Português. Coimbra, 1936.

Études Portugais - Gil Vicente. Herculano. Antero de Quental, le Symbolisme. Lisboa, 1938.

Gil Vicente, Floresta de Enganos. Lisboa, 1941.

Vida de Bocage. Lisboa, 1943.

Moniz Barreto - Ensaios de Crítica. Lisboa, 1944.

Pequena Antologia da Poesia Brasileira nos Séculos XVII e XVIII. Coimbra, 1944.

Ondas Médias - Biografia e Literatura. Lisboa, 1945.

Perfil de Adolfo Coelho. Lisboa. 1948.

Destino de Gomes Leal - Poesias Escolhidas. Lisboa, 1952.

Portugal e o Brasil no Processo da História Universal. Rio de Janeiro, 1952.

Perfil do Prof. Sousa Júnior. Porto, 1953.

O Campo de São Paulo - A Companhia de Jesus e o Plano Português do Brasil (1528-1563). Lisboa, 1954.

Vida e Obra do Infante D. Henrique. Lisboa, 1959.

Problemas Universitários Luso-Brasileiros. Lisboa, 1955.

Conhecimento da Poesia. Bahia, 1958, e Lisboa, 1970.

O Retrato do Semeador. Lisboa, 1958.

Almirantado e Portos de Quatrocentos. Lisboa, 1961.

Romance, Existência e Visão do Mundo. Lisboa, 1964.

Elogio Histórico de Júlio Dantas. Lisboa, 1965.

La Génération Portugaise de 1870. Paris, 1971.

Quase Que os Vi Viver, Lisboa, 1985.

Traduções

Traduziu, entre outras obras, a História da Arte, de Henri Faure, e O Que É Vivo e o Que É Morto na Filosofia de Hegel, de Benedetto Croce. Há traduções italianas, francesas, inglesas e alemãs de Nemésio: Mau Tempo no Canal, Le Serpent Aveugle, traduzida por Denyse Chast. Colecção Feux Groisés. Paris; Ed. Plon; e tradução para inglês por Francisco Fagundes, com o título Stormy Isles/Azorean Tale, lançada pela Gávea Brown; Isabel de Aragão, edição espanhola, Isabel de Aragón, La Reina Santa de Portugal, traduzida do portugês por Isabel Alcalde.
Barcelona. Editorial Olimpo.

 

Vitorino Nemésio aceita morrer em cada livro

Entrevista com Fátima Freitas Morna - Professora Universitária

Em Vitorino Nemésio coabitam o poeta, o ficcionista, o biógrafo, o crítico, o ensaísta, o cronista, o professor....

Nemésio é, sobretudo, poeta. Diz, num dos Se Bem me Lembro, que tudo o que ele é é poeta, poeta, poeta. A poesia dir-se-ia a única actividade ininterrupta mantida entre 1915/16 e 1976. A produção do ficcionista é muito circunscrita. Irá até ao fim da vida tentar escrever outro romance, mas há-de morrer, do seu ponto de vista, autor de um romance único, embora tenha publicado dois.

Havendo um dramatismo na linha da reflexão existencial, ele é, de algum modo, interceptado por uma auto-ironia? Ou não?

Se alguma coisa une todo o percurso do poeta é aquilo que ele próprio diz no prefácio de 1961 à Poesia 1935-1940: a busca do sentido da existência, uma busca dramática na medida em que se trata de um sujeito que tenta absorver o mundo para o comunicar. É um movimento de constante sístole e diástole.

Não será por acaso que ele utiliza a metáfora do coração na acepção de pulsação, pois há uma saída e regresso do sujeito carregado de mundo. A utilização dessa metáfora, que perdeu a ligação à sentimentalidade, é um ponto excelente para ver qual a raiz profunda da poesia de Nemésio: a grande raiz da modernidade europeia, romântica, como a entende Octavio Paz, que faz remontar ao romantismo o impulso da modernidade.

Nemésio é um moderno novecentista, que, como todos os modernos, tem um forte sentido de auto-ironia.

Faz-se coincidir a obra nemesiana com o movimento da "Presença". Acha redutor?

Geracionalmente, é um homem da Presença. O que Vitorino Nemésio tem de verdadeiramente presencista, e quase mais do que Régio, é o sentido de uma "literatura viva" - o credo presencista -, e não livresca. Régio declarou-o, Nemésio praticou-o, distanciando-se da Presença enquanto filiação estética restritiva.

O psicologismo de Nemésio era muito mais objectivo?

Como homem da sua geração, foi tentado, sobretudo na prosa, pelo psicologismo. Na poesia, não lhe fez falta. Na primeira das Artes Poéticas que escreveu, n'O Bicho Harmonioso, diz que poesia do abstracto, não.

A poesia não é nem o abstracto, nem o concreto, e a dimensão psicológica não faz sentido sem a integração no mundo. Poesia é outra coisa, está para lá, é síntese, vértice. Escreve em Requiescat (Limite de Idade): "Direi - não "fora!" ao mundo que me cinge/(Outro onde o sei e como chegaria?)".

Como relaciona a obra de Nemésio com o segundo modernismo?

Nemésio é, geracionalmente, um homem do segundo modernismo, que surge para a literatura depois das vanguardas. Claramente alguém depois de Pessoa.

O jogo de espelhos entre Pessoa e Nemésio faz-se como?

Ele próprio o faz em O Poema é o Portador e O Poeta é um Mostrador (O Verbo e a Morte). Ambos são a resposta ao fingidor de Pessoa. Nemésio reestrutura a herança da modernidade, desde o século XIX, e a herança modernista do arranque do século.

Não há heteronímia em Nemésio, mas aquilo que considera ser uma personalidade proteica.

Ele não precisa de outros nomes para os vários poetas nele. E nunca deixa de ser um universo poético, o sistema.

Pessoa também é um sistema...

Pessoa expõe a alteridade ostensivamente, é o passo para essa modernidade que assume a pluralidade das diferenças. Nemésio mão precisa de expor essa alteridade na ficção de várias identidades civis. Assume-a na escrita.

Fernando Pessoa não viveu. Vitorino Nemésio viveu?

Claro e, se quiser, viveu outros seres civis em conjunto com o poeta: o jornalista, o professor, o ensaísta, o ficcionista.

A abordagem do tempo é significativa ao nível da reflexão sobre a condição humana...

A concepção do tempo é muito mais do que o pormenor biográfico implícito nos versos. Parte da perecibilidade, do instantâneo. Em larga medida, um poeta escreve - e Nemésio di-lo de inúmeras formas - para inscrever uma pegada no tempo, sabendo que ela é só relativamente persistente. Mas essa é a maldição da condição humana: tentar ser tempo. Quase tempo em carne viva.

O pendor memorialista de Nemésio tem a ver com isso?

Memória é aquilo que une todo o tipo de actividade. Nemésio escreveu que a literatura memorialística é uma maneira de tornar presente o passado e deixar o presente para o futuro. Uma das coisas mais bonitas do percurso poético de Nemésio é a transposição desse tempo registado na memória circunscrita, particular, identificável em seres, pormenores, espaços, para um dos poemas do Limite de Idade: "Da fundura do tempo ucrónico, sem duração nem forma,/Rebenta tempo real, tempo de coisas".

Ser, Nada, Tempo, Morte... Há ou não uma inspiração existencialista na temática nemesiana, como diz Fernando Guimarães?

Existencialista mais no sentido de uma fenomenologia. Como lugar de encontro com um dado momento das mentalidades. Não como adesão a um sistema.

A relação do escritor com o sagrado parte da perda e da ausência? "Com medo de o perder nomeio o mundo"...

O Ser, o Nada, o Tempo, a Morte convergem no Tempo, na sua dimensão humana. A transcendência é um não tempo. Será uma ausência, uma carência, um horizonte para que se aponta.

Um homem da dúvida, Nemésio?

Até ao fim. A trajectória da obra quase se vai desmentindo. A década de 50 é explosiva na diversidade. Há livros que quase podiam ser assinados por poetas diferentes, apesar das zonas de contaminação e contágio. Nem sequer existem as certezas estéticas, até porque não as tem de outra ordem. Octavio Paz diz que é moderno quem aceita morrer. O bonito do poeta Nemésio é aceitar morrer em cada livro.

Nemésio diz que a poesia se irmana à metafísica e à mística.

A poesia que lhe interessava era a que refundia a relação entre a escrita e a metafísica, recuperando a raiz platónica, do poeta que assinala a ausência, que lida com as sombras no interior da caverna, sabendo que lá fora há outra coisa. Mas a poesia de Nemésio não é mística. Nunca apaga a sua realidade verbal e a sua relação com o mundo em favor de outra coisa.

Num momento em que se fala tanto da poesia da experiência e do real, não deixa de ser curioso reflectir-se sobre essa espécie de "mito comum"...

Se calhar a indagação metafísica surge num ou dois dos poetas Nemésio, mas seguramente está ausente em muitos outros que se interessam pelo tempo real, tempo de coisas. Nemésio tem aquela modernidade espantosa de escrever nos anos 60 como poetas dos anos 80 virão a escrever, captando o pormenor da dimensão voluntariamente prosaica, na experiência de vazar o quotidiano. O Andamento Holandês é, nesse sentido, profundamente prosaico.

Joaquim Manuel Magalhães filia "alguns da nova poesia portuguesa" nessa tradição...

E julgo que ainda o faz. Vitorino Nemésio é um poeta de longo curso, polimórfico, que foi capaz de criar em si poetas sempre novos e diferentes. Não perde por isso o contacto com as camadas geracionais seguintes. Não tem medo de alterar a linguagem. Escreve em Limite de Idade: "Não negarei poesia de antes/Com poesia de depois".

Há sempre o apelo do arquipélago - a tal "ilha arcaica"...

Nemésio diz numa carta a Casais Monteiro, a propósito da sua definição como ficcionista: "Não posso simplificar muito o meu estilo, porque, bem vê, para mim, como para Baudelaire, as coisas respondem umas às outras". Tudo é analogia. A ilha é o universo, eixo do mundo, microcosmo. Um universo de experiência e de teste. O ilhéu é, para ele, uma rocha tendo em volta o mar. Excelente metáfora do ser humano.

Nemésio regionalista/universalista. Actual, a questão?

Muito datada, é uma questão de geração, obsessiva sobretudo para o ficcionista, afinal, o dilema do final da década de 20: ser por Aquilino ou por Brandão.

"Passo do Milhafre" ressentia-se de um certo regionalismo à semelhança de Aquilino...

Em Passo do Milhafre, Nemésio tentou transpor ficcionalmente o universo ilhéu, e sofreu com a acusação de regionalista, um dos argumentos para os presencistas considerarem que ele não era moderno. A partir daí, e até ao Mau Tempo no Canal, tentará configurar esse universo como outra coisa. Nesse sentido, trata-se de um percurso coerente.

Como conjugava Vitorino Nemésio a erudição com a inspiração popular?

Detestava a palavra erudição. Nemésio era assistemático, porque analógico. Achava que o saber é memória. Sofreu muito a fazer a tese, porque lhe repugnava o registo concreto dos passos de prova. Então, saltava rapidamente. E a erudição dir-se-ia algo de muito moroso. O Se Bem me Lembro passa por aí: lembrar-se que algures leu qualquer coisa, mas não perder tempo a buscar a fonte. O que o atraía era a interpretação, na qual era veloz..

                                                        ANA MARQUES GASTÃO (Jornalista)

 

 

Nemésio na voz de Amália

                                   António Valdemar

   

A voz de Amália poderá aproximar centenas e centenas de milhar de pessoas das homenagens a Nemésio, durante as comemorações do centenário do nascimento que decorrerão a partir de 19 de Dezembro deste ano.

Foi através de David Mourão-Ferreira que se estreitaram as relações entre ambos (David era, ao tempo, casado com uma sobrinha de Valentim de Carvalho, editor dos discos de Amália, que contou com a colaboração fundamental de João Belchior Viegas).

Amália tinha grande admiração por Nemésio. Recebia-o em sua casa, com primores de gentileza e requintes de fidalguia. Em sinal de muito apreço, resolveu incluir no seu reportório a Décima de Sílvio e Silvana, um dos mais representativos poemas da Festa Redonda. Esteve para estrear num projecto de José Pracana a difundir na ilha do Corvo para todo o mundo lusófono. Ambos me honraram com o convite para escrever o texto de apresentação desse espectáculo.

 
  Lopes de Araújo, que estava à frente da Televisão nos Açores, deu todo o apoio. Sucedeu que Alain Oulman musicava, na altura, versos de Cecília Meireles e não pensava noutra coisa. Amália avançou com uma interpretação da Décima reservando, para logo que possível, os arranjos do compositor ou, se ele entendesse, uma versão apenas da sua autoria.

Decorrido algum tempo falecia Alain Oulman, em Paris. Amália resolveu, por isso, gravar a sua concepção musical da Décima de Silvio e Silvana. Alguns amigos que a visitavam tiveram o privilégio de a conhecer. Sou dos que a ouviu muitas vezes. E sempre com fascínio.

Quanta emoção ao cantar: Tem sinais de anjo na cara/e de cabrinha no pé (...) O seu pente é um triste cardo,/a sua vida é chorar (...) Retraça cachinhos de uvas./A terra dá flores de sangue,/O céu agulhas de prata;/Uma sereia escondida/Canta, canta que se mata;/Toca flauta!e tu, Silvana,/Queima o teu pente dorido /sirva-te o mar de cabelo!/Silvio - navio perdido.

Nas sucessivas estrofes daquela Décima (24 salvo erro), João David Pinto Correia, professor da Faculdade de Letras de Lisboa, num ensaio notável sobre Voz e Povo na Poesia de Vitorino Nemésio, identificou "a dimensão lendária de uma Sereia Melusina com sinais de Dama de Pé de Cabra mas transformada em Bela Infanta". Para além do que Pinto Correia salientou e do que há de raiz e sentimento açoriano, Amália - pude confirmá-lo - via, revia e sentia na Décima de Silvio e Silvana o seu retrato ou o retrato que desejava para fundamentar a sua dupla condição de mulher e de artista.

Numa das inesquecíveis reuniões em casa de Amália, solicitei-lhe uma cópia da gravação. Acedeu com todo o gosto dando indicações (lembra-se Theresa Mimoso?) para que me fosse entregue uma cassete. Voltei a pedir. Pedi outra vez. Possivelmente, ainda mais outra vez. Surpreendida de não me ter sido entregue a cassete, Amália voltou a recomendar que me cedessem cópia da gravação. De adiamento em adiamento passaram os meses. Muito mais de um ano, até que surgiu o ponto final colocado pela morte.

Mas (ça c'est seulement un détail...) tudo me faz supor que essa gravação ainda deve permanecer no espólio da casa de São Bento, oportunamente, transformada em fundação e museu. Dirijo, portanto, um apelo ao presidente da fundação, Amadeu Aguiar, ou aos seus administradores, os meus amigos e conterrâneos Lopes de Araújo e Fernando Machado Soares para que - na observância dos respectivos direitos de autor - essa interpretação, até agora inédita, seja editada no centenário de Nemésio.

No âmbito do programa agendado ou a agendar (entre 2001 e 2002 e com o habitual predomínio de conferências e simpósios reservados a eruditos), a Décima de Silvio e Silvana na voz de Amália representará um dos momentos de maior impacto nas comemorações a efectuar nos Açores, no restante espaço português e, ainda, nos países da emigração, em especial, onde se encontram radicadas as comunidades açorianas.

 DN 4-10-2001 

 

 

 

 

 
A concha
 
A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fechada de marés, a sonhos e a lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.
 
Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.
 
E telhados a de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta pelo vento, as salas frias.
 
A minha casa... Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.

 

 

 

 

O CÃO ATÓMICO

 

1.

Este cão tem folhas nas orelhas,
com quatro talos
mas o que este cão deveria ter era calos,
e só tem olhos e ossos
e morrinha num dente!
Mas, meu Deus, este cão
quase o diria meu irmão
parece gente!

 

2.

Este cão é redondo. Está deitado,
rosna com gengivas de uivo.
Dizem-me que foi lobo,
mas perdeu a alcateia
como os homens perderam a razão,
que hoje serve de osso ao cão
escapou ao cogumelo nuclear,
e por isso se foi deitar.

 

 

 

 

 

 

Outro Testamento

 

Quando eu morrer deitem-me nu à cova
Como uma libra ou uma raiz,
Dêem a minha roupa a uma mulher nova
Para o amante que a não quis.

 

Façam coisas bonitas por minha alma:
Espalhem moedas, rosas, figos.
Dando-me terra dura e calma,
Cortem as unhas aos meus amigos.

 

Quando eu morrer mandem embora os lírios:
Vou nu, não quero que me vejam
Assim puro e conciso entre círios vergados.
As rosas sim; estão acostumadas
A bem cair no que desejam:
Sejam as rosas toleradas.
Mas não me levem os cravos ásperos e quentes
Que minha Mulher me trouxe:
Ficam para o seu cabelo de viúva,
Ali, em vez da minha mão;
Ali, naquela cara doce...
Ficam para irritar a turba
E eu existir, para analfabetos, nessa correcta irritação.

 

Quando eu morrer e for chegando ao cemitério,
Acima da rampa,
Mandem um coveiro sério
Verificar, campa por campa
(Mas é batendo devagarinho
Só três pancadas em cada tampa,
E um só coveiro seguro chega),
Se os mortos têm licor de ausência
(Como nas pipas de uma adega
Se bate o tampo, a ver o vinho):
Se os mortos têm licor de ausência
Para bebermos de cova a cova,
Naturalmente, como quem prova
Da lavra da própria paciência.

 

Quando eu morrer. . .
Eu morro lá!
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras,
Pois quando me comovo até o osso é sonoro.

 

Minha casa de sons com o morador na lua,
Esqueleto que deixo em linhas trabalhado:
Minha morte civil será uma cena de rua;
Palavras, terras onde moro,
Nunca vos deixarei.

 

Mas quando eu morrer, só por geometria,
Largando a vertical, ferida do ar,
Façam, à portuguesa, uma alegria para todos;
Distraiam as mulheres, que poderiam chorar;
Dêem vinho, beijos, flores, figos a rodos,
E levem-me - só horizonte - para o mar

 

 

 

 

 

 

Nova bárbara escrava

 

Barborinha uma crioula:
Faz de bahiana evocada
Num hotel de vidro e avenca;
Usa torço cor-de-rosa,
Pano-da-costa fingido,
Chambre crivado no seio:
Seu balangandã preserva-a
Bem menos que seu enleio.
Para não ver os meus olhos
– Figa branca, figa preta -
Atira-as pra trás nas costas,
Tão bem, que só vê diante
A cuia do vatapá:
Mas eu sei quantas pancadas,
Vindo assim, seu peito dá.
Peixinho moreno, pula
No aquário do hotel de luxo
Como gota de água ao céu:
Tem vergonha de ser mate,
O seu passo é como um véu.
Barborinha é uma crioula
(Mulatinha era demais):
As cores, à parte, são várias:
Unidinhas, são iguais.
Vem servir-me cor-de-rosa,
Parda me serve xinxim
(Pérfido, atraso o jantar
Fitando-a entro e mim).
Mas o que serve em verdade
A Barborinha morena,
Na sua saia bahiana
Com roda de campainha,
Não é o envisco que comem
Os peixes do hotel de vidro,
Mas a sua graça apenas.
Tão quente (sendo ela fria)!
E as mãos! as mãos! – tão pequenas,
Tão pequenas, que eu diria
Que as fazem penas – e fogem
As aves que há na Bahia!

 

 

 

 

 

 

NOZ DE FOGO

 

Tu me deste a Palavra, a noz do fogo
Se o miolo te ficou tenho os dedos queimados.
Dá Deus nozes, Senhor... Sem dentes, desde logo,
Teu Banquete revolta os desdentados.

 

O Pão esperou na Voz fome e saliva
Ninguém comeu senão da própria suficiência:
Ao menos o Menino tem gengiva,
Saboreia a inocência.

 

Tende piedade dos Críticos,
Dai-lhes o Best-Seller
Engrossarão o seu coro.
Tudo o que for Sentido - desterrado
E oculto no choro!

 

Fazei guardar por anjos
A Significação
E em nossa carne eles tenham
Ceva e consolação.
À entrada do Verbo, imo da Morte,
Ponde uma folha a espada:
Guardaremos a Vida e o sangue ao Norte
Do Nada.

 

 

 

 

 

 

Arte Poética

 

A poesia do abstracto...

Talvez.

Mas um pouco de calor,

A exaltação de cada momento

É melhor.

Quando sopra o vento

Há um corpo na lufada;

Quando o fogo alteou

A primeira fogueira,

Apagando-se fica alguma coisa queimada.

É melhor...

Uma ideia

Só como sangue de problemas;

No mais, não,

Não me interessa.

Uma ideia

Vale como promessa

E prometer é arquear

A grande flecha.

O flanco das coisas só sangrando me comove,

E uma pergunta é dolorida

Quando abre brecha.

Abstracto!

O abstracto é sempre redução,

Secura;

Perde -

E diante de mim o mar que se levanta é verde:

Molha e amplia...

Por isso, não:

Nem o abstracto nem o concreto

São propriamente poesia.

A poesia é outra coisa.

Poesia e abstracto, não.

 

 

 

 

 

 

 

Indício Velado

 

Não toques, distância, no seu cabelo molhado;

Não lhe mexas. Rosto puro, às aguas posto e preso,

Uma imagem será o seu único peso,

Um pensamento o único beijo que me há dado.

 

Que o Índico persiga o indício velado;

Decore o Mar Vermelho o forte rosto aceso -

Mas não para morrer: para menos desprezo;

E eu próprio fique em meu amor atenuado.

 

Oh! platónico amor de ninguém e de alguma,

Espectro que criei e rodeei de lágrimas,

Vénus ainda ao longe no aro da minha espuma!

 

Imagem, força de vontade, imagem

Viva ou morta, não sei; imagem acre... mas

Verdadeira e suave, isso mais que nenhuma!

 

 

 

 

 

 

ROCHA DO MAR

Ao Armando Santos, primo e poeta


Já uma vila dos Açores
Loze ligeira no horizonte.
Será num alto das Flores,
No Pico ou logo de fronte,
Espraiadinha num cume
Ou encolhida em Calheta?
O ser nossa é que resume
Seus amores de pedra preta.
Para vila da Lagoa
Falta-lhe a cidade ao pé,
A distância de Lisboa
Já não me lembro qual é.
Para Vila Franca ser
Falta-lhe o ilhéu à ilharga,
É airosa pra se ver,
Mais comprida do que larga.
Povoação não me parece,
Nos padieiros não condiz,
Aos camiões estremece,
Mas não aguenta juíz.
Pra Ribeira Grande falta-lhe
O José Tavares no quintal,
Rija cantaria salta-lhe
Dos cunhais, branca de cal,
Mas não é Ribeira Grande:
Essa merecia foral!
No dia em que haja quem mande
Será cidade mural.
Nordeste - só enganada
Na vista da Ilha Terceira,
Longe de Ponta Delgada,
Sua sede verdadeira.
Nem Vila do Porto altiva,
A mais velha da fiada,
Em suas ruas cativa
Como princesa encantada.
De cimento a remendaram,
Coroaram-na de aviões,
Mas eternos lhe ficaram
Os bojos dos seus tàlhões.
Se é a Praia da Vitória
Não lhe reconheço a saia:
Enchem-lhe a areia de escória,
Ninguém diz que é a mesma Praia.
Talvez seja Santa Cruz
Da Graciosa, ou a sua Praia,
Com o Carapacho e a Luz
Cheirando a lenha de faia.
De S. Jorge a alva Calheta
Ou a clara vila das Velas,
E o alto, alvadio Topo
Com um monte de pedra preta
Dando realce às janelas.
As Lajes ou o Cais do Pico,
A escoteira Madalena
Vilas são de vinho rico,
Qual delas a mais morena.
Santa Cruz das Flores seria
Essa vila açoriana
Ou as Lajes de cantaria
Do bom Pimentel soberana.
Finalmente, só o Rosário,
Que do Corvo vila é,
Pequena como um armário
Ou um chinelinho de pé.
Mas não é nenhuma delas,
Nem Água de Pau, que o foi,
S. Sebastião, ou Capelas,
Da Terceira arca de boi
Como a nossa Vila Nova,
Que nem chegou a ser vila,
Tão branca na sua cova,
Tão airosa, tão tranquila.
Ah, já sei! É delas, fundo,
Que o muro alvo se perfila
Contra os corsários do mundo
Que invejam a nossa vila,
Nosso povo, na folia
De uma rocha de mar bravo,
Que o Guião da autonomia
Só por morte torna escravo.

24 de Abril de 1976

 

 

 

 

 

Escherichia

 

Mandei fazer o electrocardiograma

À minha «Beatriz de mão gelada»:

Mas fui eu, fui eu só que fui à cama,

Eu, claro! não Beatriz, nem Dante, eu nada!

 

«Mas única Beatriz consoladora»

Então não era a Morte reservada

A quem tem coração pela vida fora

E por ele sobe em hélice animada?

 

Em gráfico de sismo a sina veio

Nessa foto cardíaca: – « Receio

Que morra, Daisy!» Não: Que morra, Dolly!»

 

Pois eu não sou o Fernando Pessoa

Ou Antero, nem em Inglês seu nome soa,

Que minha Musa é Escherichia Coli.

 

Escherichia ou Beatriz, que importa o nome

Se ambos me soam igualmente belos?

A prometida morte nos consome

Como flor prometida nos carpelos.

 

Assim tu, Escherichia, és meu tormento

E nocturno tremor, Beatriz funérea!

Quem nasceu para casto fingimento

Afinal pode amar uma bactéria.

 

Pego em Escherichia ao colo,

Musa micrónica, etérea,

Mas não já de éter sulfúrico

Senão feminil bactéria.

Por ela todo estremeço

Em suor e ácido úrico!

 

in Limite de Idade

 

 

 

 

 

A vida em pedaços no mundo repartida

                    ANTÓNIO VALDEMAR


Pela sua origem e condição de açoriano, Nemésio desde o nascimento à morte, permaneceu ligado a pequenos e grandes sítios: Praia, Angra, Lisboa, Coimbra, França, Bélgica, Brasil. Há alusões contínuas celebradas em prosa e verso. Aliás, um dos seus projectos era escrever acerca das cidades da sua vida, tal como já fizera em relaçâo aos navios em que viajava, no seu destino de ilhéu e embarcadiço. Esse desejo não se concretizou, embora deixasse um levantamento sumário numa crónica das ruas de seu arruar, reabilitando um verbo arquivado no velho dicionário Morais.

"A rua principal", observou, "é o foco do estilo de viver e por aí evocá-la é dizer muito sobre as leis do comportamento humano. Ninguém consegue tornar-se cidadão sem cruzar muitas vezes os seus semelhantes na terra que escolheu ou lhe coube para morar, e todos eles tendem a afluir ao centro de cavaco e de trânsito do aglomerado: à sua espinha dorsal. (...) a calle mayor da vila era a Rua de Jesus, onde naturalmente muito passeei e aprendi - que a rua é escola do homem, e "homem da rua" o ideal da limpa cidadania."

A Praia da Vitória, onde nasceu a 19 de Dezembro de 1901 - completa-se agora um século -, só viria a ser elevada a cidade em 1982, mas isso não o impediu de a considerar como tal: "Para que a Praia da Vitória fosse realmente cidade nem lhe faltava, além do relevo urbano, o primeiro sentido daquela palavra em latim. Cabeça de capitania, era um concelho velho e uma comarca recente. Da capitania donatária ficara a glória e o ressentimento com Angra, a nova capital da ilha. As terras fazem-se por reacção de umas às outras: É a boa emulação civil."

"A Praia, para mim", escreveu, é a torre da Câmara e o seu relógio inerte e sedativo. Mais altas que ela ficavam as torres da Matriz, plantadas na colina da vila. Os seus altos perfis tinham um sentido urbano muito mais vasto e agudo."

Era para Nemésio um motivo permanente de identificação e de orgulho. Ele próprio redigiu, por ocasião do V Centenário do nascimento do Infante D. Henrique, a inscrição de uma lápide colocada na fachada dos Paços do Concelho: "Esta é a Câmara de Diogo de Teive, Álvaro Martins Homem, Pêro de Barcelos, que aqui povoaram e daqui abriram à Europa os mares do Oeste."

Tinha dez anos quando, em Outubro de 1912, se radicou em Angra, a fim de frequentar o liceu. Encontrou um horizonte bastante diferente da Praia.

Publicava aos 15 anos o primeiro livro de versos, Canto Matinal, e estava à frente de uma revista literária, Estrela de Alva. Se não guardou da maioria dos professores boas recordações, nunca esqueceu a amizade com Jaime Brasil, seu colega, cinco anos mais velho, primeiro mentor intelectual e que o marcou para sempre. A literatura e uma certa estúrdia contribuíram para o insucesso escolar.

Dos professores que lhe fizeram a vida negra não resta memória, mas no andar nobre da Casa Grande dos Betencourts, onde também funcionou o liceu e hoje está ocupado pelo Arquivo e Biblioteca Pública, existe uma sala com uma lápide que tem o nome de Vitorino Nemésio.

Concluiu o segundo ciclo do liceu na ilha do Faial. Chegou à Horta em 1918. A cidade dos cabos submarinos fascinou-o. O Faial, o Pico e São Jorge ficaram perpetuados no Mau Tempo no Canal e, também, no Corsário das Ilhas e no Jornal do Observador.

À semelhança do que se verifica hoje, a matemática representou um dos grandes obstáculos para Vitorino Nemésio. Encontrou, todavia, um professor que se dedicava à literatura e não lhe pôs quaisquer dificuldades. Chamava-se Florêncio Terra e pertencia à mesma geração de Roberto e de Carlos Mesquita. Jamais esqueceu Nemésio o acolhimento que lhe dispensou.

Não resistia a esta exclamação: "Gosto da Horta como de nêsperas! Tinha saudades do que fui, já nem sei bem como, aqui. Todo o imaginado é mais ou menos frustrado quando o realizamos; mas na Horta, não é excedido. Ao comprido da rua do Mar desenvolvem-se as casas; sobre a célebre rua única da cidade as travessas que descem da encosta trazem também a sua moderna contribuição de fogos e de trânsito. O largo do Infante, ao rés do mar, funciona de belveder sobre a massa compacta e aguda da montanha do Pico [...] E o resto, tudo bem: Matriz no alto onde foram as casas do donatário flamengo e que os jesuítas adaptaram, como sempre, cubicular e faustosamente, mais duas ou três igrejas conventuais nos altos; a cada ponta, ou sainte, as paróquias da Conceição e das Angústias, e o mais que é preciso para completar uma cidadezinha airosa alva como uma noiva - Horta!"

Trinta anos depois, Nemésio continuava a recordar "os primores do acolhimento, a hospitalidade patriarcal, a gentileza em tudo e por tudo".

DN 17-12-2001

 

 Cidades adoptivas: Coimbra e Lisboa

A. V.


O mais açoriano de todos os escritores açorianos não hesitou em adoptar como suas duas cidades, Lisboa e Coimbra, nas quais passou a maior parte da vida. Nelas se relacionou com os movimentos culturais e políticos; as tertúlias, os jornais e revistas. Constituiu família em Coimbra. Casou em Coimbra e em Coimbra nasceram os seus filhos Georgina (1926), Jorge (1929), Manuel (1930) e Ana Paula (1931).

Chegou a Coimbra em finais de 1921 para acabar o liceu e ter acesso à Universidade. Matriculou-se em Direito e transitou para Letras. Iniciou em Coimbra uma actividade cultural organizada que lhe permitiu afirmar-se como universitário e homem de Letras. Revisor do quadro da Imprensa Universitária, contou com o apoio intelectual e pessoal do seu director, Joaquim de Carvalho, que classificava, juntamente com Aurélio Quintanilha e Afonso Duarte, entre os seus "mestres socráticos", pois nunca fora aluno de Joaquim de Carvalho na Faculdade de Letras. Exerceu, nos anos 20 e 30, activa participação no Centro Académico Republicano; na Maçonaria; na Associação dos Estudantes de Letras; no Orfeão Académico e na Associação Cristã da Mocidade, organização protestante com influência no meio universitário. A acção cívica e política de Vitorino Nemésio integra-se na linha doutrinária do segundo grupo da Seara Nova, contra o "Integralismo Lusitano", o CADC (organização de cariz católico e/ou monárquico) e na luta contra a ditadura militar implantada em 28 de Maio de 1926 e que se consolidará, em 1932, com Salazar, na chefia do poder. Contemporâneo da Presença, colega e correligionário dos seus directores, não faz parte do grupo fundador.

Já depois de se fixar em Lisboa, sentia-se bem em Coimbra, ou numa certa Coimbra que não perdeu a alma: "A cidade cresceu um pouco anarquicamente [...] a Lusa Atenas, com o desmonte da Alta, tem um pouco menos de Atenas e bastante mais de pato-bravo..."

Quis ficar sepultado em Coimbra, no Cemitério de Santo António dos Olivais. O desejo cumpriu-se. Foi a 21 de Fevereiro de 1978.

Para Nemésio, quando, em 1919, estava na ilha Terceira, Lisboa significava romper com a solidão e o marasmo, realizar-se como poeta e escritor, encontrar no jornalismo um modo de sobrevivência e de afirmação pública. Chegou para cumprir o serviço militar e aproximar-se dos círculos intelectuais. Exerceu o jornalismo profissional. Voltou a Lisboa, em 1930, para concluir a licenciatura em Filologia Românica. Fez doutoramento e concurso para professor. Ascendeu a catedrático a 16 de Julho de 1942.

Mas Nemésio não se limitou ao magistério universitário. Prosseguiu a colaboração nos jornais, estendeu a colaboração à rádio e à televisão. Esteve à frente da orientação editorial da Bertrand, foi um dos directores da Alliance Française e fez parte da classe de Letras da Academia das Ciências.

Desde os anos 30 aos anos 70, residiu, por exemplo, e durante sucessivas décadas, num quarto andar da Rua Sociedade Farmacêutica, a dois passos do Marquês de Pombal, uma das transversais da Avenida Duque de Loulé para o Conde Redondo. Esta casa foi para Nemésio a sua décima ilha. Ali escreveu a quase totalidade da sua obra literária. Viveu, também ali, a crise religiosa que atingiu ressonância pública n'O Pão e a Culpa, O Verbo e a Morte e Retrato do Semeador.

Desde o inicio dos anos 70 sentia-se "um homem cercado". Multiplicavam-se os problemas e acentuava-se a doença. Uma certa euforia não conseguia esconder o estado de espírito que o dominava Ele próprio declarou: "Viver dói. Sobretudo o viver de agora (para quem viveu muito, naturalmente!). Dói pelo que custa a aguentar a cadeia cerrada das obrigações à pressa - duplamente cadeia, pois é corrente e cárcere."

Em grande parte devido à televisão, todos o conheciam e lhe falavam onde quer que fosse.

"Todos os actores", escreveu Nemésio, "gostam dos palcos onde se demoram mais tempo, e o último tende a acamar por cima do primeiro como os estratos geológicos que deixam a terra à flor. É a ternura e apego à fragilidade de cada dia; o jogo duplica entre a efemeridade e o eterno."

Existiu, sem dúvida, um vínculo muito forte com Lisboa, mas as raízes mais profundas estavam em Coimbra e, muito em especial, na Praia da Vitória, lá onde os navegadores do Infante abriram à Europa os mares do Oeste.

DN 17-12-2001

O fascínio da Europa e a paixão pelo Brasil

A. V.


Há outras cidades que exerceram grande influência na sua formaçãoo intelectual e no seu destino universitário - Montpellier e Bruxelas. A França e a Bélgica conduziram Nemésio à descoberta do mundo cultural e científico. Da poesia de Valéry, de Claudel e Apollinaire, da relação pessoal com Valey Larbaud, Jules Supervielle e Jean Cassou. Beneficiou dos conselhos de Marcel Batallion, Robert Ricard e da "vigilância paternal de George le Gentil, patriarca do lusismo em França", com "um discreto saber de abelha carregada em suas flores".

Tudo isto concorreu para uma experiência cosmopolita e para "ampliar a intimidade com uma literatura de finesse que seria chamado a ensinar". Alastrava a Guerra de Espanha e vislumbrava-se no horizonte a calamidade de uma conflagração muito maior. "A beira do barril de pólvora", ponderava Nemésio, "mas com alma para a esperança", aqueles mestres e, ainda, Julles Sion deram-lhe "no dia-a-dia a medida do que a gente é ao pé dos que suaram, como Sanches, para um quod nihil scitur, autenticamente conclusivo".

Uma carta de 16 de Fevereiro de 1935 para Afonso Lopes Vieira, que revelei, em primeira mão, numa comunicação apresentada na classe de Letras da Academia das Ciências, denuncia o seu fascínio perante a mensagem espiritual do franciscanismo.

A questão religiosa, que se torna pública a partir dos anos 50, ainda se evidencia quando trabalha em Montpellier. Data de então a biografia de Isabel de Aragão, Rainha Santa (1936), onde é exaltada a acção primordial da mulher de D. Dinis no apoio à ordem franciscana, designadamente à comunidade de Alenquer, que procedeu à restauração do culto do Espírito Santo.

Mas será em 1938/39, quando reside na Bélgica, como bolseiro do Instituto de Alta Cultura, que se começa a operar a luta entre o homem humano e o homem metafísico, conforme já assinalei com base noutra correspondência para Afonso Lopes Vieira.

Esteve no Brasil, entre 1952 e 1972, largas temporadas. Para Nemésio o Brasil era aventura, descoberta e reencontro: é o "violão de morro", com xácara, com samba, com farsa dramática, negros do cais Mauá, balada da Rua do Catete e um "inferninho" de Copacabana. Mas, também, são os romances da Baía, a barca Flor das Marés, os verídicos e espantosos sucessos do lugre Flor d'Angra, da praça do mesmo nome, na ilha Terceira, "pátria do autor", com vinte marçanos do Pará.

A influência dos Açores e dos açorianos é enorme no Brasil. Francisco do Canto, natural de Angra, filho de Pedro Anes do Canto, provedor das Armadas nos Açores, foi incorporado, logo no princípio do século XVI, na frota de Tomé de Sousa e com ele colaborou em numerosas tarefas decisivas para o presente e futuro do Brasil. A tal ponto que Tomé de Sousa (como aludiu na Fenix Angrense Manuel Luís Maldonado) não hesitou em declarar que se deveu a Francisco do Canto a própria fundação da cidade da Baía.

São inúmeros os contributos dos açorianos no Brasil, na defesa e salvaguarda das fronteiras, na libertação do domínio holandês, no sistema de povoamento, na génese e evolução da sociedade brasileira. Vitorino Nemésio relatou muito do que fizeram em dois livros: Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos e Caatinga e Terra Caída. Pormenoriza a intervenção dos açorianos na rota dos Bandeirantes, no desenvolvimento do litoral e interior de Santa Catarina, onde perdura um extenso legado nas manifestações de cultura popular, na gastronomia e na arquitectura, desde Itapoã, no Norte, até Passo de Torres, no Sul.

As referências açorianas não se limitam a Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Maranhão, Ceará e Amazónia. Distribuíram-se através de todos os outros estados. Milhares e milhares de açorianos anónimos e seus descendentes, ao longo de quase cinco séculos, nos mais diferentes sectores de actividade, contribuíram para a grandeza e prosperidade do Brasil.

E Vitorino Nemésio na sua itinerância de terra em terra comunicou-nos, em poemas, crónicas e estudos de investigação histórica, um testemunho de conhecimento directo que nos leva a recordar a nobre, ínclita e desventurada figura de D. Pedro, "o infante das sete partidas", quando afirmava com um saber de experiência feito e na saborosa língua do século XV: "É viajando que mais se aprende dos costumes e índole dos homens do que pela leitura de grossos volumes."

 DN 17-12-2001

 

1971: A última lição na Faculdade

ANTÓNIO VALDEMAR


Dezembro de 1971. Perante um auditório repleto de colegas, alunos e outros intelectuais e artistas que também lhe foram levar um abraço afectuoso, Vitorino Nemésio proferiu na Faculdade de Letras de Lisboa a última lição. Completava dentro de dias 70 anos e atingia o limite da idade imposto pela lei, a fim de cessar funções docentes.


Na despedida oficial terminou com esta declaração peremptória: "Aos meus velhos e últimos alunos, todos tão fiéis, ou então discretos censores, comovidamente digo o meu "até à vista!""

""Decíamos ayer...", começou Fr. Luis de León a sua lição, anos depois de o cárcere lhe ter interrompido a última. Eu, que resisto atrevido ao divino dom da humildade de que fiz tão mau uso, gloso assim, ao fechar:

"Diremos amanhã..."

Pois quem pode afirmar que isto não continua?"

O mestre de gerações sucessivas, o escritor e o comunicador que, ao longo de mais de meio século, exerceu intervenção permanente através da cátedra, do livro, dos jornais, da rádio e da televisão, não aceitava a reforma.

E não aceitou mesmo. Horas antes de ser internado no Hospital onde viria a falecer ainda falava na Academia das Ciências sobre o centenário de Azevedo Neves, professor da Faculdade de Medicina de Lisboa, seu patrício e amigo.

Sem ter escrito o livro de memórias que todos esperávamos (e se encontram, afinal, dispersas em crónicas, poemas, ficções e cadernos de apontamentos do espólio) Vitorino Nemésio deixou na última lição - estou ainda a ouvi-lo - o retrato e auto-retrato do muito do que foi e do que sonhou: "Quis ser padre, militar, marinheiro, médico. E isto não só pelo lúdico mimetismo de infância e da adolescência, mas por um forte imperativo de intuição e vivência de situações humanas tópicas no contexto social em que cresci - o que já tem muito mais que ver com a personalidade radical em crisálida do que com as suas leis de desenvolvimento etário."

Como se definiu e como classificava a sua própria actividade de intelectual repartida entre a escrita e o magistério: "O que fiz como poeta, historiador e biógrafo (o género tem má fama...) já não é desta conta. Só serve para pôr a questão: se um criador verbal pode ser professor. A tradição italiana de Leopardi a Ungaretti - escalas à parte - diz que sim. A francesa quase que só apresenta o caso de Valéry, ainda assim apenas chamado a uma rubrica de Poética no Colégio de França por força do fascínio cartesiano dos noemas formais de Monsieur Teste, que assim doutorou o modesto agenciário de uma companhia de seguros. Sábio oficial, na família, era só o irmão, Jean Valéry, que ainda conheci e tratei, decano de Direito em Montpellier."

Como explicava o ensino, que leccionava em moldes tão diferentes dos mestres de Lisboa e, muito em especial, de Coimbra: "Era raro trazer um plano de aula articulado ponto a ponto. Respeitava apenas o que se pode achamar as leis do campo de interesses - o título do curso e o assunto - procurando manter um mínimo de nexo didáctico. Isto me criou fama de professor interessante e persuasivo mas pouco fiel aos padrões. Sofri com o "mas" sabendo-o exacto. Mas a vocação era essa, e ou me salvava rasgatando a deficiência metodológica com certo poder socrático de acordar o nosce te ipsum fornecendo-lhe contudo, de caminho, algumas noções aferidas, ou teria de concluir por um desacerto de carreira imputável à escola que me selecionara e sobretudo a mim mesmo."

"O ensino", ponderou ainda, "não é mera informação do saber mas norma de humanidade, testemunho do autêntico. Uma sociedade que só instituísse informações teóricas aplicáveis ao êxito rentável teria a civilização moribunda. É o grande risco da nossa."

"Toda a vida", continuou Nemésio, "estudei de tudo e o mais que podia, para o que desse e viesse. Não me preparava dia a dia para amanhã e depois ou racionando, como a formiga, do Verão propício ao Inverno rigoroso. Mas talvez não fosse apenas leviano, como a cigarra, pois nunca tive de dançar no Inverno e cantei sempre."

"Nisto de fabulário (...) cheguei a pensar em escrever eu mesmo a minha fábula, que seria O Rouxinol e o Mocho, para tentar tirar a limpo o que seria a moral da minha passagem por este mundo: pois já nos bons tempos de Coimbra eu era, entre os sábios aquiescentes, um poeta extraviado, e entre os poetas maliciosos um sábio enganado no número da porta..."

Ao traçar o seu próprio perfil acrescentava: "Sessenta anos de letras fizeram de mim uma espécie de corrente contínua da fala - penso em acto, e como que já nem posso fazer funcionar o interruptor, esperar a caridade de um pouco de vida vegetativa, que os velhos tanto apreciam à imagem e esfíngica semelhança dos Gatos de Baudelaire, texto que por acaso não saltei nas minhas negligências de ofício...

Mas fazia questão de observar: "Como sou filólogo", linguista à antiga; "penso por dentro das palavras e, aqui, recorro a Virgílio: Exerceo diem."

Para Nemésio uma lição constituía um acto de criação, fruto das circunstâncias de momento, suscitando nuns o interesse apaixonado, noutros o choque do insólito, mas fosse qual fosse a reacção ninguém ficava indiferente. Tinha como objectivo despertar vocações, suscitar entusiasmos em vez de seguir os rumos do ensino tradicional, retórico e formalista, repetindo até ao limite de idade as mesmas lições e os mesmos cursos.

Através da última lição Vitorino Nemésio fez uma série de evocações de acontecimentos e figuras da universidade, de Lisboa e de Coimbra; os contactos com mestres e intelectuais da França, da Bélgica, da Espanha. A vida vivida na literatura, no jornalismo, e até na política, no ardor dos anos 20 e 30. Passo a passo, ainda se depara o irresistível testemunho das raízes açorianas.

 

Vitorino Nemésio: o professor, o comunicador e o mestre

ANTÓNIO REGO CHAVES


Entalado entre dois aplicados assistentes, o quase tímido - mas não modesto, isso nunca - catedrático Vitorino Nemésio foi conduzido, como se estivesse sob escolta policial, ao Anfiteatro I da Faculdade de Letras de Lisboa. E forçado a debitar, em três duríssimas etapas, algo sobre Alexandre Herculano, acerca do qual sabia tudo, mesmo os hábitos quotidianos, mesmo a cor das vestes, mesmo as mais recônditas idiossincrasias. Descrevia com inacreditável minúcia o seu biografado, como se tivesse vivido no seu tempo, conversado com ele, conhecido os mesmos homens e os mesmos problemas individuais, sociais, políticos.

Quê, era assim nos terríveis tempos de Salazar, os professores levados de rastos para as aulas e forçados a ensinar, como delinquentes? Nada disso. É que Vitorino Nemésio possuía o condão de acabar as suas lições como as tinha começado: sem ensinar nada susceptível de ser incluído nas perguntas a que teríamos de nos submeter em exame final. Por isso tinha sido obrigado a caminhar, como para o patíbulo, pelos seus inquisitoriais "ajudantes", para o Anfiteatro I, a fim de dar "a matéria", custasse o que custasse. E deu mesmo, apesar de todas as tentativas de fuga durante o percurso oral. Aí, ao mínimo desvio para temas menos "examináveis", os asssistentes tocavam-lhe no braço mais ao seu alcance, pigarreavam, murmuravam-lhe ao ouvido qualquer coisa que não podíamos escutar. E ele lá continuava, pela mão de Alexandre Herculano, a caminho do fim, Vale de Lobos. Contrariado, o mais ínvio possível, entre deslumbrantes etimologias que faziam as nossas delícias e iam desesperando, cada vez mais, os seus implacáveis vigilantes.

Era, de facto, uma presença encantadora. Um "comunicador nato", dir-se-ia mais tarde, quando começou a aparecer na televisão, tornando-se conhecido em todo o "país real". Foi tudo isso, e até talvez mais, para muitos de nós, seus alunos. Fascinante homem de cultura, monologador ímpar, mágico da palavra obscura. Mestre, mesmo mestre? Mestre no sentido pleno em que o foi um Lindley Cintra? Ai, isso não. O exemplo verticalidade e da inteireza do carácter - não será essa a mais inequívoca prova de fogo para um homem de bem? -, esse Vitorino Nemésio não o conseguiu transmitir aos seus alunos em 1962, durante a "crise académica". E foi triste, porque o estimávamos, até então, quase como se fosse um novo Sócrates, alheado de toda a mesquinhez que infectava o nosso sufocante mundo universitário. O sábio deu lugar ao vulgar funcionário público e, tal como outros docentes, depois de uma ténue solidariedade, refugiou-se na sua aveludada torre de marfim, no seu "estatuto de intelectual" - e abandonou-nos às feras, tanto quanto sei em nome da comodidade própria e da família, que correria indiscutíveis riscos económicos caso ele fosse impedido de ensinar.

Reconheço que é sempre difícil julgar alguém com justiça; mas, de bradar aos Céus, seria confundir um cidadão com um súbdito. Lindley Cintra foi um cidadão, corajosamente ao lado dos seus alunos, em pleno salazarismo, no ano de 1962.
Vitorino Nemésio, não.

 

Óscar Lopes catedrático num parecer de Nemésio

A. V.


Tudo em Nemésio possuía uma forte componente afectiva. Posso testemunhá-lo em 25 anos de convívio diário, que, também, se radicavam em mais de meio


século de relações íntimas com os meus pais. A minha casa de família, na Ribeira Grande, e a relação fraternal com meu pai desde Coimbra, ambos da Geração da Pré-Presença (revista Bysâncio), foram evocadas, entre muitos outros expressivos documentos, no poema Rocha do Mar, incluído no seu último livro, Sapateia Açoriana.

Em 1975, Vitorino Nemésio, que seguiu com apreensão o "Verão quente" e sofreu alguns agravos pessoais, não hesitou em corresponder a um pedido de Rui Luís Gomes, para, com outras individualidades, dar parecer, a fim de que Óscar Lopes - que pertencia aos altos quadros do Partido Comunista - fosse "proposto professor catedrático efectivo da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, independentemente de concurso de provas públicas".

Vitorino Nemésio, que não hesitou um momento em se pronunciar favoravelmente, deu-me cópia desse parecer e encarregou-me de o registar no correio para o destinatário, o reitor Rui Luís Gomes.

O documento fala por si e revela os dotes de temperamento e de carácter de Vitorino Nemésio. Tendo sempre em apreço os altos dotes científicos de uma personalidade com a dimensão intelectual de Óscar Lopes, ultrapassava Vitorino Nemésio, como se poderá ver, as divergências políticas e os antagonismos ideológicos.

Pelo seu interesse, transcrevemos na íntegra o parecer, que até ao momento permanecia inédito:

"O Ex.mo Reitor da Universidade do Porto, Prof. Doutor Rui Luís Gomes, distinguiu-me pedindo-me parecer sobre os méritos do licenciado Óscar Luso de Freitas Lopes, literariamente Óscar Lopes, professor efectivo dos liceus, professor e comissionado da Direcção da Faculdade de Letras dessa Universidade - a fim de que ela fundamente a proposta dele para a nomeação de professor catedrático efectivo, independentemente de provas académicas formais.

Óscar Lopes tem uma longa e notável carreira de professor e de crítico, de investigador das ciências humanas, de pedagogo e de metodólogo da didáctica de vários graus de ensino. (Fez crítica aplicada de livros, durante anos, no O Comércio do Porto e noutros jornais e revistas.)

A sua licenciatura em Filosofia Clássica (Lisboa), a sua preparação musical no Conservatório do Porto e filosófica na Universidade de Coimbra, durante o magistério de Joaquim de Carvalho; depois a sua frequência de universidades e institutos estrangeiros, sempre levado por funda curiosidade científica orientada para as novas correntes do surto das ciências sociais, prepararam-no excepcionalmente para a situação de cumieira que ocupa na cultura portuguesa.

Dotado de viva inteligência, de agudo espírito crítico, do gosto da análise a partir de enfoques múltiplos, alternando-a com sínteses parciais que procura fazer convergir em conclusões globais seguras, a sua crítica da literatura portuguesa e, em geral, do nosso pensamento é uma das mais fortes e fecundas. A História da Literatura Portuguesa (manual), em colaboração com António José Saraiva, na qual lhe coube sobretudo o período contemporâneo, foi a primeira grande revelação do que afirmo. Um gosto literário seguro, aliado à compreensão dos movimentos estéticos modernísticos e à posse de métodos históricos e críticos actualizados, fez dele um dos mais influentes historiadores actuais da cultura portuguesa, tanto na criação especificamente literária como na história das ideias, na sociologia da cultura, na pedagogia e nalguns aspectos da psicologia.

Uma boa preparação matemática permitiu-lhe propor-se tratar algoritmicamente problemas de psicologia, linguística e semiótica em geral. (Para apoio destes meus juízos permito-me remeter para a notória bibliografia do autor, abreviando este já longo parecer.)

Não quero contudo rematá-lo sem aludir exemplificativamente às profundas e vastas análises das obras dos nossos poetas e ficcionistas, principalmente do movimento Orpheo para cá, na História da Literatura Portuguesa, in História Ilustrada das Grandes Literaturas (Lisboa, Estúdios COR). E ainda à rara capacidade de Óscar Lopes como organizador e moderador de colóquios, conferências públicas, simpósios e congressos. Aí os seus dons dialécticos e o seu bom sentido socrático do diálogo confirmam a forte personalidade do professor e do crítico, cuja formação predominantemente marxista não impede uma larga flexibilidade hermenêutica e uma visão original das obras e das formas.

Tive o gosto de contar a Óscar Lopes, ainda bem jovem, como colaborador num modesto e efémero seminário de Literatura Portuguesa que orientei em Lisboa, pelos anos 30, no Centro de Estudos Filosóficos. Depois comentou oralmente no Porto, como moderador de discussão pelo auditório, várias lições e conferências minhas. De ambas as experiências guardo a melhor impressão, honrando-me de poder ter participado assim de situações concretas do seu poder intelectual. No privilégio de eu ter sido, como criador literário, alvo de extensos e benévolos estudos seus não deveria falar, por melindre de suspeição.

Enfim, sou de parecer que o licenciado Óscar Luso de Freitas Lopes - Óscar Lopes - tem méritos excepcionais para ser proposto professor catedrático efectivo da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, independentemente de concurso de provas públicas, segundo a legislação vigente de provimento por distinção ou escolha.

Lisboa, 10 de Julho de 1975/Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva.

Professor catedrático aposentado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (Filologia Românica)."

 

Escritor não consta dos currículos escolares

ANA PAGO


No ano em que se assinala o centenário de nascimento de Vitorino Nemésio, o DN quis saber qual o peso do escritor no ensino português. Os resultados?


"Não conheço o autor. Nunca li nada dele, em nenhum ano", declarou Marina Silva, de 18 anos, estudante do 1.º ano na Escola Superior de Educação Jean Piaget. Uma posição igualmente partilhada por Bruno Pestana, 24 anos, a frequentar o 4.º ano na Faculdade de Direito de Lisboa: "Por acaso não dei nada de Vitorino Nemésio. Conheço o autor de nome, mas nunca cheguei a ler nada dele. Nem me recordo de ver alguma coisa nos livros."

A tendência é fácil de explicar: Vitorino Nemésio não está incluído nos actuais programas curriculares a título obrigatório. "Chegou a ter um romance, o Mau Tempo no Canal, como opção, a par de José Saramago e Vergílio Ferreira. Mas actualmente este último é o único autor do século XX obrigatório", explicou a delegada de português da Escola Secundária Maria Amália, Margarida Bento. Adiantando: "Está, contudo, nomeado como leitura complementar, pelo que os alunos poderão sempre contactar com a obra nemesiana." Fora das aulas.

Para a directora-adjunta do Departamento do Ensino Superior, Dulcineia Gil, outra hipótese de dar Nemésio é "trabalhando-o mediante contratos de leitura". Na prática, significa que o professor sugere leituras aos alunos que revelem interesse a esse nível. "Leituras essas que poderão ser do autor, desde que estudantes e docentes estejam de acordo", sublinhou a responsável.

É no ensino superior que Nemésio joga os seus trunfos - sobretudo na Faculdade de Letras de Lisboa (FLL), onde é lido em várias disciplinas. Logo no primeiro ano, por exemplo, Mau Tempo no Canal é abordado na Introdução aos Estudos Literários, no capítulo da narrativa. E a poesia será trabalhada nas cadeiras de Teoria da Literatura e de Literatura Portuguesa, pela mão da professora Maria Lúcia Lepecki.

"Vitorino Nemésio é sem dúvida acarinhado pelo Departamento de Literaturas Românicas aqui da faculdade", confessa aquela que é também a presidente da Comissão Científica do Departamento de Literatura da FLL. Referindo várias personalidades da casa ligadas ao autor: "Temos cá a professora catedrática Vitalina Leal de Matos, a leccionar Introdução aos Estudos Literários. E a professora Fátima de Freitas Morna, uma investigadora de peso da obra nemesiana."

Dois nomes a juntar aos muitos que continuam a prestar homenagem a Vitorino.

O das letras. O das ilhas. Nemésio.

DN, 18-12-2001                 

 

O açoriano universal


Vitorino Nemésio - cujo centenário do nascimento se completa - revelou na poesia, na ficção, no ensaio e na crónica de viagem as inquietações do homem universal, com as solicitações e ansiedades da cultura da sua geração e do seu tempo, mas as raízes e motivações da quase totalidade da sua obra são visceralmente da Praia da Vitória, de Angra do Heroísmo, da ilha Terceira, em suma, da região dos Açores.

As características diferenciais do arquipélago dos Açores, perante as outras regiões do País, são evidentes. Gaspar Frutuoso (1522-1591), nas Saudades da Terra, obra que inicia a criação literária açoriana, especificou as singularidades do meio físico e da ocupação humana: "Na verdade, qualquer ilha destas, neste comprido e largo mar oceano, não é outra coisa senão uma prisão algum tanto espaçosa, e até, de coisas pequenas, quanto mais das grandes, uma muito estreita e muito mais curta sepultura."

Reconheceu o papel do homem na modificação do ambiente, o esforço da vontade e inteligência para o transformar e até contrariar as condições naturais. Todavia, os factores da insularidade e os condicionalismos do isolamento atingiram expressão literária profunda em Roberto de Mesquita (1871-1924), que viveu e morreu no exílio voluntário da ilha das Flores e, muito em especial, Vitorino Nemésio (1901-1978). O conceito de açorianidade teorizado por Nemésio surgiu no final dos anos 20 e nos anos 30, períodos de formação e maturidade intelectual, entre a publicação do Paço do Milhafre (1924), constituído por textos de ficção - um discípulo de Aquilino transferido para a realidade insular -, e a poesia, também de conteúdo insular, que reuniu em La Voyelle Promise (1935) e no Bicho Harmonioso (1938). Antecedem o Mau Tempo no Canal (1944) e a Festa Redonda (1950), obras nas quais atingiu a plenitude.

Para Vitorino Nemésio a Geografia predominava sobre a História. A açorianidade testemunhava uma idiossincrasia própria: "o nosso modo de afirmação no mundo, a alma que sentimos, na forma do corpo que levamos" (...) "uma forte variedade da nação portuguesa, criada em meio milénio no isolamento norte-atlântico.

Fora da ilha ou da região, continua a vê-la e a senti-la: A nortada encheu de ilhas o horizonte / olhando bem nenhuma è verdadeira / mas cada uma em mim tem porto e monte / que eu sou homem que vê de outra maneira.

Daí e num dos momentos altos do seu percurso, ao receber o Prémio Montaigne, atribuído pelo contributo para o património cultural da Europa e a defesa da universalidade da literatura, quando procedia ao balanço da sua vida e obra, afirmar categoriamente: Sou ao mesmo tempo e, acima de tudo, português açoriano europeu, americano brasileiro e, por tudo isto, românico hispânico e ocidental e gostava de ser homem de todo o mundo.

Decorrido menos de um século após o povoamento das ilhas, há açorianos a frequentar cursos de Leis, Medicina e Teologia em Coimbra, Évora e Salamanca. Está provado que Rui Gonçalves, natural de São Miguel, foi para Coimbra e, em 1539, ascendeu à cátedra. No século XVI, no itinerário da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, deparamos o açoriano Diogo Pereira, filho de Ana Pereira, cujo pai, o flamengo Guilherme Van der Hagen, está na origem de gerações sucessivas de várias ilhas e que tomaram o nome Silveira. Mas não foi só Fernão Mendes Pinto que falou desse longínquo cidadão dos Açores errando pelo Oriente. Também o identificou e referiu Diogo do Couto, nas Décadas.

Vitorino Nemésio, ele próprio, no seu modo de ser e de agir e através da componente da sua obra literária, constitui o exemplo do homem universal, do açoriano no mundo sempre disposto a participar no encontro de civilizações e de culturas.
 


DN, 19-12-2001

 

                       

 

O Corsário Revisita a Infância
Por ANA SÁ LOPES
Quarta-feira, 19 de Dezembro de 2001

As crónicas de Nemésio desterrado na sua terra, pela violenta carga emocional que o regresso lhe provoca

Instaladíssimo no continente desde que entrou na universidade, o açoriano Nemésio só voltará às suas ilhas em duas viagens, a que chamará "corsos" e relatará depois num volume chamado "Corsário das Ilhas". O "primeiro corso" passa-se em 1946, já Nemésio tinha escrito o "Mau Tempo no Canal". Antes de partir, no navio da Insulana que era o transporte da época, Nemésio está objectivamente "perturbado com os seus fantasmas de infância", como assinala Machado Pires no prefácio. "Oh, solidão das ilhas!... Conquista da terra por firmeza no pouco que se tem e por tino e recuo a tempo no muito que se deseja... Portos fechados, ilhas à vista... Entre nós e o mundo aquela porção de sal que torna incorrupto o aro da terra... Movimento e força; outras vezes tranquilidade e pasmo (...) Ilhas pontuadas naquela brutalidade oceânica que é afinal a única coisa delicada e discreta da nossa vida - o mar do nosso segredo... a volubilidade do nosso ardor que nada estanca... esta inconsistência de projectos humanos (mas desumano é o lógico, o ético e o inflexível! Além disso o vapor da carreira... o boletim meteorológico (grau de humidade à saturação 100...) e o acostamento de Santos com a bandeira de saída... Oiço os rebocadores."

A viagem levá-lo-á de Ponta Delgada à Terceira natal, da Graciosa ao Faial, demorando-se na Horta à qual chama "a cidade do canal" - e ainda há entre os amantes nemesianos quem insista furiosamente que o "Canal" do "Mau Tempo" é o canal Pico-São Jorge! Não é, o que uma leitura atenta do livro e esta referência à Horta deixam claro.

O "Corsário das Ilhas" - uma mistura de registos literários, entre a autobiografia e a crónica de viagem - mostra um Vitorino Nemésio desterrado na sua terra, pela violenta carga emocional que o regresso lhe provoca. Sobre a Horta, onde viveu em 1918, ainda no liceu: "Dois ou três meses bastam para criar entre um forasteiro e o seu efémero exílio uma acomodação razoável. As raízes cortadas longe pegam perto. Há logo ramaria nova, amigos que se admiram de nos conhecer há tão pouco, ruas que nos parecem reboar de passadas que teríamos ouvido no berço. O acerto não vem logo; o tempo decorrido no exílio é retrospectivo, remitente, mais consagrado ao perdido do que ao que se acaba de ganhar. Mas vem a hora do adeus, e tudo o que parecia violência feita à nossa tendência imóvel, que refere a paz e a felicidade ao primeiro lugar que nos calhou, torna-se o 'melhor tempo', o território da lembrança que os faróis da noite vão lentamente dourando e logo remetendo ao escuro... Mau tempo no Canal".

Em 1955, volta Nemésio, desta vez já de avião, que abominava. Mudaram os tempos: "Tornado à casa ancestral onde me criei e cresci, ainda me envolve o antigo silêncio sideral, o cheiro húmido e morno da vegetação sempre verde, a sua perspectiva do relevo ilhéu acamado pelas erupções de lava efusiva (...). Mas de hora em hora quebra-o, primeiro um zumbido, e logo um ronco poderoso do quadrimotor que se aproxima. É que sou vizinho das Lajes, uma das maiores plataformas da era atómica".

 

Poesia: Torto de Tanto Amar
Por LUÍS MIGUEL QUEIRÓS
Quarta-feira, 19 de Dezembro de 2001

Um poeta maior que não se tornou mítico

Fátima Freitas Morna, que organizou e prefaciou a edição da obra poética de Vitorino Nemésio na Imprensa Nacional, sugere que esta poesia, "tão dispersa no tempo e tão pouco homogénea entre si", acompanhou, desde 1916 até meados dos anos setenta, a própria evolução da lírica portuguesa. O juízo parece difícil de negar. Mas o mérito de Nemésio não se esgota nesta capacidade de acompanhar, e de muitas vezes antecipar, os sucessivos ciclos de inovação da poesia do seu país. O espantoso é que o consiga fazer sem abdicar de uma voz singularíssima, tão imediatamente reconhecível nos poemas franceses de "La Voyelle Promise" (1935) como na oralidade tradicional de "Festa Redonda" (1950), na genuína poesia religiosa de "O Pão e a Culpa" (1955), nos "Poemas Brasileiros", compilados num só volume em 1972, ou ainda nessa extraordinária apropriação poética da terminologia científica que é "Limite de Idade" (1972).

A reedição da poesia de Nemésio pela Imprensa Nacional, em 1989, demorou o seu tempo a esgotar. E quem anda pelos alfarrabistas constata que as suas primeiras edições estão longe de atingir as cotações dos livros de Eugénio de Andrade, Sophia, Cesariny ou Herberto Helder, para já não falar dos fenómenos de coleccionismo puro e duro em que se tornaram as obras de Régio ou Torga. Isto não terá muita importância, mas indica que o Nemésio poeta parece não ter ainda conseguido criar para usar uma expressão em voga, o seu "clube de fãs".

Não sendo Nemésio um poeta menor do que qualquer um dos citados - e é seguramente melhor do que Régio e Torga -, talvez se possa arriscar uma explicação para esta aparente injustiça. É que aquilo que constitui a verdadeira especificidade de Nemésio dificilmente atrai essa adesão visceral e emotiva capaz de construir um mito literário. Não há em Nemésio essa beleza quase palpável dos poemas de Eugénio, nem a verticalidade limpa de Sophia, nem o génio absoluto dos mais altos momentos de Cesariny - para não falar do prestígio de ser o merecido representante máximo da "única real tradição viva" -, nem essa convicção radical no poder demiúrgico da palavra poética que subjaz à obra de Herberto. E, ainda por cima, Nemésio deixou colar-se-lhe a imagem de um homem instalado no regime salazarista.

Um dos seus talentos é essa naturalidade do "falado" que muitos dos seus críticos já apontaram e que é levada ao extremo nas suas recriações dos metros tradicionais, onde a oralidade é privilegiada mesmo em detrimento da correcção ortográfica e sintática. Um leitor desprevenido pode supor facilidade neste dificílimo exercício de cruzar, num discurso de espantosa fluidez, o genuinamente popular, e regional, com envios constantes à mais exigente cultura erudita, as interrogações metafísicas e as mais ínfimas circunstâncias do vivido. Como uma esponja, a poesia de Nemésio absorve tudo, quer a nível temático, quer terminológico, mas sempre na perspectiva da concreta existência humana, do "dasein" heideggeriano.

Outra característica de Nemésio é uma espécie de bem humorado pudor, que tanto lhe impede a declaração sentimental mais directa, como o leva a evitar esse tom lapidar que a generalidade dos leitores associa à alta poesia.

Joaquim Manuel Magalhães já apontou o modo como este poeta sabota as formas tradicionais a que recorre, quer ao nível da rima, quer da métrica. Mas esta estratégia de sabotagem ultrapassa o plano formal. Um dos esquemas que encontramos frequentemente nos poemas de Nemésio é um final que desdramatiza, às vezes de forma quase desconcertante, o efeito poético que foi sendo construído, mas que, numa segunda leitura, abre para insuspeitadas profundidades o que parecia esgotar-se num conseguido exercício estético. A título de exemplo, leia-se este breve poema de "O Cavalo Encantado" (1963), com os seus quatro versos iniciais de tom "rilkeano" e o seu inesperado remate: "Cavalo e cavaleiro o vento adornam/ Com uma pata e uma pluma;/ À tarde unidos tornam,/ Um estame de sangue numa rosa de espuma.// Tanta pressa, afinal, para coisa nenhuma."

O "eu" que atravessa toda a poesia de Nemésio é um "eu" ligeiramente desastrado, esse "clown de Deus" de que fala Lourenço, ou, para citar o próprio poeta, esse "torto serei, mas só de a muito amar" (poema 9 de "Andamento Holandês", 1963). Esta subversiva auto-ironia, que os seus textos reflectem também no plano formal, torna Nemésio um dos lugares mais altos e inovadores da poesia portuguesa do século XX, mas, talvez felizmente, protege-o de venerações excessivas.

 

Biografia "Rouxinol e Mocho" - Homem das Ilhas e do Mundo
Por ANTÓNIO MACHADO PIRES*
Quarta-feira, 19 de Dezembro de 2001

A biografia de Nemésio é bastante o percurso da sua obra, da ficção, das crónicas, principalmente da poesia

A propósito de António Nobre, Nemésio escreveu que a biografia é "uma velha ciência que raro se deu por tal" e que o que lhe dá valor não é o somatório dos factos mas a verdade universal a partir da exemplaridade pessoal. Eis um bom pressuposto para percorrer a vida de Nemésio, açoriano da Terceira, nascido a 19 de Dezembro de 1901, nas vésperas da República e da I Guerra, e projectado a um plano europeu de Prémio Montaigne (1974), professor universitário, romanista, romancista, poeta (poeta de tudo - se considerou), ensaísta, conferencista, homem de rádio e, no fim da vida, de televisão.

A infância decorreu na sua vila natal, a Praia de Vitória, ouvindo histórias de pescadores, frequentando a casa das tias, fazendo uma escola primária com prenúncios de êxitos intelectuais. Leia-se o conto "Cabeça da Boga" (em "Mistério do Paço do Milhafre") para entender a atmosfera de uma sociedade patriarcal, rural, conservadora, desafiada pela emigração para o Brasil e para a América do Norte.

Nemésio vem para o liceu em Angra (uma Babel da Terceira! dirá, com ironia) e aí dirige o jornal "Eco Académico" e publica, em 1916, aos quinze anos, o seu primeiro livro: "Canto Matinal" (ressonâncias de Antero e Junqueiro).

Um ano de liceu na Horta, em 1918, (portara-se mal em Angra, partira vidros e andara mal na Matemática...) deu-lhe o pano de fundo para "Mau Tempo no Canal" (começado em 1938, em Bruxelas, e acabado em Lisboa em 1944). Neste romance, documento da vida insular, inscreve a conflitualidade social dos meios pequenos e também uma história de amores e contrariedades, que havia também de ser sua, simbolizada nessa Margarida Clark Dulmo, que não era nem Margarida nem Clark Dulmo, mas modelada por uma profunda ligação afectiva que Nemésio manteve por mais de três décadas.

Os primeiros anos em Lisboa (depois de 1920) foram de jornalismo e convivência com republicanos e homens de letras. A sua iniciação ao jornalismo fez-se como repórter de "A-Pátria".

Em Coimbra estudou Direito, depois mudou para Letras, tendo sido impressionado por professores como Paulo Merea, Carolina Michaelis, Joaquim de Carvalho. Por proposta deste último, foi revisor da Imprensa da Universidade. Colaborou nas revistas "Bysancio" e "Conimbriga" e seria, com Afonso Duarte, co-fundador da "Tríptico". Colabora também na "Presença". Entretanto, transfere-se para a Faculdade de Letras de Lisboa onde, em 1931, conclui Filologia Românica com altas classificações.

Em 1926 casara, em Coimbra, com D. Gabriela Monjardino Azevedo Gomes, de quem viria a ter quatro filhos: Georgina, Jorge, Manuel e Ana Paula. Nemésio ficaria sempre muito ligado a Coimbra, onde foi a enterrar (Tovim).

Tendo projectado estudar o Liberalismo na emigração (mais uma vez o eco da importância da Terceira na causa liberal), ficou-se pelo estudo de Herculano; mas a sua tese de doutoramento, "A Mocidade de Herculano até à volta do exílio" (1934), ficaria uma referência definitiva para o erguer do vulto de Herculano. Nemésio admirá-lo-ia toda a carreira e tomá-lo-ia com frequência para tema das aulas.

Foi leitor em Montpellier (1935-39) e em Bruxelas (a partir de 1939), onde conviveu intensamente com universitários e intelectuais.

O Brasil, intuído desde a infância, e destino de emigração de familiares, foi seu lugar de visita frequente. Uma experiência de professor na Universidade da Bahia frutifica num compromisso cultural, dá-lhe oportunidade de introspecção religiosa e publica o "Conhecimento de Poesia" (ensaios sobre autores portugueses e brasileiros). Do Barroco brasileiro se ocuparia em "O Segredo de Ouro Preto" (crónicas, 1954), ao Brasil do Nordeste e do Amazonas voltaria com "Caatinga e Terra Caída" (1968), além de belos poemas brasileiros, tendo admirado Cecília Meireles e Lins do Rego, este último ousadamente comparado a Dostoievski. Quando atingiu o limite de idade, era não só professor de Cultura Portuguesa como de Literatura Brasileira.

De resto, interessou-se pela aproximação dos dois países, tendo publicado "Portugal e Brasil no Processo História Universal" (1952).

A biografia de Nemésio é bastante o percurso da sua obra, da ficção, das crónicas, principalmente da poesia.

Em 1924 publicara o primeiro volume de contos, "Paço do Milhafre" com intenções regionalistas e prefácio de Afonso Lopes Vieira. Em 1927 surgirá o romance "Varanda de Pilatos", que escolhe como espaço e tempo a Angra da sua adolescência, de fogachos amorosas e ideológicos. Os truques da ficção, ainda um pouco incipientes, deixam muito a descoberto o adolescente. A saudade das ilhas na França ditou-lhe "La Voyelle Promise" e a evocação da "lumiére açoréènne"; "O Bicho Harmonioso" (1938) tem belos poemas de simbólica e de "maravilhoso" insular ("algas, corais, estranhas maravilhas"...), sem esquecer a saudade do Pai (poema "O canário de oiro"), que lhe morrera em 1923; "Eu, comovido a Oeste" e "Nem toda a noite a vida" continuam essa dominante "saudosística" da Ilha, tomando já um acento religioso; "O Pão e a Culpa" (1955) documenta não só a sua cultura cristã como um "regresso" à fé e à "inocência" da infância, a consciência de filho pródigo e do barro humano de que é feito; "O Verbo e a Morte" (1959) é um belo livro de exercício de conhecimento pela linguagem ("casa do ser"), reflexo de leituras filosóficas, como reflexo de leituras científicas havia de ser "Limite de Idade" (1972).

Física nuclear, medicina, microbiologia, poesia de circunstância (neste caso, reflexão do momento transformada em expressão poética), a recorrente saudade da "ilha ao longe", o sentido da busca de Deus no fim da caminhada, a morte adivinhada na doença de que sabe ser portador, fazem deste livro uma obra invulgar nos homens de letras, que raro se aproximam liricamente das ciências...

Ainda tem tempo para descobrir um eros crepuscular, pujante e avassalador, que, nos poemas "a Marga", conhecidos ou a conhecer em inédito último volume de poesia, marcam um percurso existencial e sentimental pouco vulgar.

Em 1971, é convidado a fazer um programa na RTP, que intitula: "Se bem me lembro". Aqueles minutos a preto e branco, falando de tudo um pouco, com um nexo de correlação de saberes que contava com a própria espontaneidade dos gestos, conquistaram o público e provocaram centenas de cartas. Um fenómeno raro.

Um dos livros a que mais queria - e que andava revendo para reedição - era "Corsário das Ilhas". Uma "peregrinação sentimental recôndita", com camadas de erudição, história e geografia humana que não encobrem completamente o homem em revisita às suas ou à "sua" ilha... uma peça, pois, do "Jornal de Vitorino Nemésio".

Ainda em 1976, pouco antes de morrer, sai "Era do Átomo - Crise do Homem", prova da diversidade de interesses.

A "hispanidad" de Unamuno sugeriu-lhe o termo "açorianidade".

Quando morreu, em Lisboa, a 20 de Fevereiro de 1978, era já reconhecido como um dos maiores poetas e romancistas do século XX em Portugal. A síntese do seu saber deu-a ele próprio: "Cheguei a pensar em escrever eu mesmo a minha fábula, que seria o Rouxinol e o Mocho (...), pois já nos bons tempos de Coimbra eu era, entre os sábios aquiescentes, um poeta extraviado, entre os poetas maliciosos, um sábio enganado no número da porta (...)."

"Rouxinol e Mocho" - homem da sua "ilha ao longe" e do mundo.

*Professor Universitário, presidente do Seminário Internacional de Estudos Nemesianos

 

Ficção: O Romance de Todos Os Romances
Por FÁTIMA FREITAS MORNA*
Quarta-feira, 19 de Dezembro de 2001

"Mau Tempo no Canal" é a resposta à herança de Eça, é "O Meu Romance", necessário e absoluto

Em 1944, "Mau Tempo no Canal" deu a Vitorino Nemésio a ambicionada consagração como romancista: abundante e favorável atenção da crítica, o grande prémio literário da altura (Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências) e um acolhimento comercial que sucessivas reedições viriam a confirmar ao longo dos anos.

Contudo, a mais conhecida obra de Nemésio é o foco de um mal estar que no diário reaparece com frequência: "o medo de morrer autor de romance único". Poeta impresso em livro desde 1916 ("Canto Matinal"), será como poeta que Nemésio se despedirá dos prelos 60 anos depois ("Sapateia Açoriana", 1976), deixando ainda nos últimos diaas de vida, em 1978, dois poemas nas páginas de uma revista.

Em tão amplo período de quase constante produção poética, a ficção narrativa aparece isolada em cinco títulos publicados entre as décadas de 20 e de 40, entre os contos de "Paço do Milhafre" (1924) e os de "O Mistério do Paço do Milhafre" (1949), sendo eles, em parte, os mesmos, com revisões, acrescentos e supressões. No meio fica outro romance, "Varanda de Pilatos" (1927), de que o autor pede a Casais Monteiro que "pelo amor de Deus não me fale nesse monstrozinho", carta de 24-11-1935), ao mesmo tempo que lhe envia as três novelas que serão publicadas sob o título de uma delas, "A Casa Fechada" (1937). Ora, em pleno período de intensa aprendizagem em tantos domínios, vivendo em França e depois na Bélgica, enquanto preparava o concurso que lhe daria um posto de trabalho em Portugal, publicava a sua "Poesia Moderna" (La Voyelle Promise", 1935, "O Bicho Harmonioso", 1938), e fundava a sua alternativa à "Presença" ("Revista de Portugal", 1937-40), ia Nemésio tentando fabrticar em si um ficcionista à altura da sua geração, imaginando, na carta citada, "as pragas de um futuro Nemésio agarrado ao seu Régio, Casais, Outros, e o Modernismo Português", para reconstituir à posteriori o sentido desse momento fundamental na literatura portuguesa. E nesse panorama futuro teria forçosamente que entrar um grande romance que, mais do que garantir um lugar pleno ao seu autor (sendo então, como hoje, a narrativa uma espécie de sinédoque da literatura efectivamente lida pelo público em geral), demonstrasse a vitalidade de uma tradição que parecia orfã desde que Eça de Queirós se fora, em 1900, deixando a descendência minada por um paradigma insuperável. "Mau Tempo no Canal" é a resposta a esse desafio, é "O Meu Romance", necessário e absoluto, entrevisto no diário (18-02-1936) sob um título abandonado, mas elucidativo: "Longitude Oeste". E é, nesse sentido, uma aposta ganha: metendo nele um pouco de todas as modalidades narrativas, como Eça fizera em "A Ilustre Casa de Ramires", Nemésio provou a si mesmo a ambicionada capacidade para gerir as grandes massas narrativas que no século XIX tinham fixado o horizonte do romance moderno (que era o seu) e que era capaz de o fazer actualizando-o com os contributos maiores da renovação novecentista nesse domínio, entre os quais o "parentesco" descoberto em Virginia Woolf terá sido determinante. Se o diário (11-06-1962) regista com prazer a classificação de "romance camiliano" que Óscar Lopes, excelente leitor da sua obra, atribuíra a "Mau Tempo no Canal", isso não significa que a novela passional de raiz romântica o esgote, mas apenas que também ela lá está, como lá estão as marcas dos núcleos estruturantes de tantas histórias contadas nos últimos dois séculos, desde a novela histórica à saga familiar e ao romance de aprendizagem. De certo modo, Nemésio escreveu nele todos os romances possíveis, talvez por isso adiou até ao fim a conclusão das múltiplas tentativas de um novo romance que deixou esboçadas.

Mas não será o ensaio nemesiano uma outra espécie de narrativa, a de alguém que vai tentando contar a história de um tempo, de um momento do mundo, através da leitura do que outros escreveram? Nesta perspectiva, torna-se revelador o facto de, no espólio, a maior parte dos textos de crítica e de ensaio se agrupar em pastas com a indicação de "vultos", "figuras", ou "perfis". É que mesmo num estudo de fôlego como "O Campo de São Paulo" (1954), mal se esconde o narrador de gentes, tempos e lugares por detrás do compilador e intérprete da documentação. É o que acontece na enorme massa de textos sobre Herculano que, desde a tese de 1934, se prolongam até ao fragmento dela editado em 1977 ("Retrato de Herculano"), talvez porque no romântico recriado ao longo da vida por Nemésio estivesse o protagonista de uma história emocionante, para lá da própria ficão: a história de um século inteiro, o século XIX, e do que o seguinte faria do seu legado. É essa história, fragmentária e intermitente, que a maior parte do ensaio de Nemésio lê nos poetas e escritores de que se ocupou.

*Investigadora da obra de Nemésio, comissária da exposição "A Rotação da Memória", patente na Biblioteca Nacional

 

O Modelo Televisivo do "Bom Observador"
Por MÁRIO MESQUITA
Quarta-feira, 19 de Dezembro de 2001

Nemésio foi o nosso maior cronista televisivo. Provavelmente, o último, porque, entretanto, o género quase desapareceu.

"Se bem me lembro...", de Vitorino Nemésio, e "Conversas em Família", de Marcelo Caetano, eram duas cátedras, com auditório nacional, que contribuíram para mudar a comunicação televisiva que, na fase salazarista, ainda se encontrava modelada pela herança radiofónica: o orador a ler o discurso com a cabeça enfiada no texto, semi-encoberto por uma floresta de microfones.

A semelhança entre os dois programas residia, antes de mais, no "formato": um cadeirão, o espectador encarado de frente, como destinatário da conversa, a ausência de mediação por qualquer jornalista em "estúdio". Ao tempo de Salazar, predominava ainda o modelo da "comunicação" dirigida às multidões presenciais. O orador dirigia-se a manifestações de apoio à guerra colonial no Terreiro do Paço ou aos "deputados", nas sessões da Assembleia Nacional. As "Conversas em Família" ou o "Se bem me lembro" visavam o invisível auditório televisivo, cada um dos telespectadores em sua casa.

Ainda no campo das semelhanças, Caetano e Nemésio eram professores. Falavam "ex-catedra". Figuras relevantes da Universidade Portuguesa, pilar fundamental do regime do Estado Novo, transportavam para a televisão o modelo do discurso pedagógico. "Conversavam" com a nação, como o professor ensinava aos alunos.

Marcelo introduzia na comunicação política, no final dos anos 60, uma preocupação argumentativa inovadora no quadro do regime autoritário, que correspondia a concepções já expostas na conferência "A Opinião Pública no Estado Moderno" (in "Ensaios Pouco Políticos", Lisboa, Verbo, s.d., p.75-124), proferida em 1965, quando se encontrava afastado do poder. Não se contentava em afirmar, fazia questão de explicar. Explanava e rebatia, em questões controversas, como as da guerra colonial, os argumentos de um interlocutor imaginário. Situava-se num lugar de autoridade política e pedagógica.

As diferenças entre os dois programas não eram menos relevantes do que as semelhanças. Marcelo transpunha o estilo próprio de uma aula de ciência política, transferida da Faculdade de Direito, a principal escola de quadros do regime. Assumia o papel de primeiro-ministro, político, líder do partido único. Vitorino Nemésio actuava à imagem e semelhança das suas aulas da Faculdade de Letras, que deixaram marca em sucessivas gerações de alunos, pela criatividade e erudição, mas também pelo estilo conversado, ameno, algo dispersivo, de alguém que sabia conjugar o prazer do convívio e a difusão do saber. O programa de Marcelo obedecia a um propósito de persuasão, o de Nemésio era um lugar de cultura e obedecia ao modelo da "charla", à maneira e semelhança da crónica escrita ("Jornal do Observador") e radiofónica ("Ondas Médias") em que mostrava ser mestre.

Esta aproximação não visa estabelecer afinidades político-ideológicas entre o jurista, doutrinário e sucessor de Salazar e o autor de "Mau Tempo no Canal" (sobre a atitude do escritor perante o Estado Novo leia-se o artigo de António Valdemar, "Nemésio Político, Antes e Depois do 25 de Abril", in Nova Atlântida, Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, Vol. XLIV, 1998-1999). Pretende-se apenas sugerir que se inseriam num mesmo dispositivo de comunicação em que a televisão adoptava, com algum sucesso, o formato da "conferência", género em decadência na sua modalidade presencial, que conhecera a sua época áurea quando o prestígio das personalidades públicas ainda se "fabricava" entre os pares, em universidades, academias ou salões, longe das técnicas de difusão massiva que começavam a impor-se.

Se quiséssemos estabelecer uma equivalência entre géneros jornalísticos e os programas de Caetano e Nemésio, diríamos que as comunicações do primeiro-ministro obedeciam à lógica de um editorial desenvolvido, argumentativo, político, e as do escritor se inseriam no modelo da crónica, em que a erudição se disfarçava nas entrelinhas de uma conversa descontraída em que a rica gestualidade do professor jogava com o "pathos" do auditório. Nas crónicas televisivas, radiofónicas e jornalísticas de Nemésio, a temática obedecia à diversidade característica da diarística e do jornalismo. Inscrevia-se naquilo que o escritor poderia ter designado por programa do "bom observador", essa figura que, em seu entender, "tende a rarear no nosso tempo, precisamente na medida em que a perfeição da observação científica dispensa o homem comum do encargo de observar, dando-lhe a papa feita, por assim dizer, em pratos chamados 'diagramas', 'organogramas', 'telex'...Assim o nosso tempo se tornou num grande cartaz de índices, além de código de sinais. (...)Assim viciados (...) como havíamos de ser, na marcha para o ano 2000, bons observadores?" (V. Nemésio, "Jornal do Observador", Lisboa, Imprensa Nacional, p. 24).

Com vasta sabedoria para integrar os "signos de agora" (título de outra obra sua) em contextos históricos e culturais mais amplos, Vitorino Nemésio era o exemplo do tal "bom observador", capaz de iluminar os mais variados e inesperados ângulos de um acontecimento, por banal ou desinteressante que fosse, mas afastando-se sempre do "estilo conceituoso, pensamentista" porquanto, em seu entender, "só raros conseguem lapidar assim as ideias", como "Pascal e Nietzsche, por exemplo" (V. Nemésio, op. cit., p.173).

A notoriedade do grande escritor ficava a enorme distância da popularidade do teleconferencista. Mas não há que estranhar o aparente paradoxo, característico de país pouco letrado. Nemésio foi o nosso maior cronista televisivo, na acepção plena da palavra. Provavelmente, terá sido também o último, porque, entretanto, esse género quase desapareceu do pequeno-ecrã. Perante a concorrência aguerrida - com recurso a novelas, concursos, "reality-shows" e notícias de "fait divers" - nenhuma televisão generalista ousaria programar o "Se bem me lembro" a horas de grande audiência. Talvez às duas da madrugada, Vitorino Nemésio, se ainda vivesse no ano 2002, pudesse gozar o seu momento de minoritário esplendor televisivo.