2-2-2006

 

A perseguição aos protestantes na Ilha da Madeira (1838-1846)

 

 

 

O Dr. Robert Reid Kalley nasceu na Escócia em 8 de Novembro de 1809. Ficou órfão de pai aos 10 meses e de mãe aos 6 anos. Formou-se em medicina e cirurgia na Universidade de Glasgow. Agnóstico, converteu-se ao cristianismo aos 25 anos e foi estudar Teologia. Quis ir como missionário para a China, mas a saúde frágil de sua esposa Margaret obrigou-o a ficar na ilha da Madeira, onde chegou em 1838. Com vista a praticar medicina, foi defender tese em 1839 na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa.

Regressado à Madeira, curou doentes, criou escolas e fez também obra de evangelização da doutrina protestante. Na época, o catolicismo era ainda religião do Estado, nos termos da Carta Constitucional e o proselitismo religioso do Dr. Kalley era muito mal visto. Durante algum tempo, o Dr. Kalley sentiu-se ainda protegido pela Acordo celebrado entre Portugal e a Inglaterra, que proibia a perseguição dos súbditos ingleses por motivos religiosos, mas os ânimos acirraram-se sempre mais. Entretanto já ele tinha convertido algumas centenas de madeirenses que o defendiam.  

Por volta de 1846, surgiram arruaças com ele e os seus sequazes e, vendo a sua vida em perigo, foi obrigado a fugir em 9-8-1846 para bordo do navio “Forth”, que zarpou para Trinidad, onde se reuniu com sua esposa e partiu para Inglaterra. A sua casa foi totalmente destruída e incendiada assim como as escolas por ele fundadas.

Cerca de 200 residentes na Madeira, de convicções protestantes, andavam a monte fugindo às represálias dos populares amotinados e só puderam escapar fugindo para bordo de outro navio inglês, o “William of Glasgow” a 23 de Agosto de 1846. Alguns dias depois, mais 500 madeirenses seguiram para Trinidad no "Lord Seaton."  Mais tarde juntaram-se-lhes mais algumas centenas. As autoridades da Madeira facilitavam a emigração, para se verem livres do que chamavam os “calvinistas”. Os primeiros emigrantes estabeleceram-se em Trinidad, Antígua, St. Kitts, St. Vincent e na Jamaica. Uma boa parte deles (cerca de metade) foi depois para o Estado de Illinois.

O Governo inglês exigiu e recebeu do Governo Português uma indemnização de 7000 libras pelos prejuízos sofridos pelo Dr. Kalley.  Este enviuvou em seguida, casando em 1851 com Sara Kalley. Visitou os seus amigos madeirenses em Trinidad e no Illinois e estabeleceu-se depois no Brasil, onde chegou a 10 de Junho de 1855, prosseguindo aí a sua acção de evangelização.

Em 11 de Julho de 1858, Kalley organizou a Igreja Evangélica (posteriormente denominada "Fluminense"), constituída por cinco britânicos (o casal Kalley e três ingleses), oito portugueses (três casais que haviam fugido da Ilha da Madeira, bem como José Pereira de Souza Louro, o primeiro cristão protestante que Kalley havia baptizado no Brasil) e ainda um brasileiro, Pedro Nolasco de Andrade, baptizado no dia da organização da Igreja.

O Dr. Kalley e sua esposa deixaram o nome ligado a um livro de orações que teve inúmeras edições com o título “Salmos e Hinos”.

Kalley morreu aos 79 anos em Edimburgo, em 17 de Janeiro de 1888. Sua  esposa faleceu 19 anos depois, em 1909, com a idade de 74 anos.

 

 

 

 

Bibliografia online:

 

Exiles of Madeira, by REV. W. M. BLACKBURN 

PRESBYTERIAN BOARD OF PUBLICATION, Philadelphia, 1880.

http://freepages.genealogy.rootsweb.com/~klondike98/Exiles/ExilesofMadeira.htm

 

Fernando Castelo Branco, Subsídios para a História do Protestantismo na Madeira: O caso Kalley

Actas do I Colóquio Internacional da História da Madeira, 1986

http://www.nesos.net/fr_imagens_artigo.cfm?cod_artigo=49

 

Manuel de Sant’Anna e Vasconcellos,

Revista Historica. Do Proselytismo Anti-Catholico exercido na Ilha da Madeira pelo Dr. Roberto R. Kalley, Médico Escocez desde 1838 até Hoje

Typ. do Imparcial, 1845, Funchal

http://www.nesos.net/fr_imagens_livro.cfm?cod_livro=435

 

LINKS:

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Biografia do Dr. Kalley

Wikipedia

 

 

EXPOSIÇÃO DE FACTOS

por

 

R. R. KALLEY, M.D. & C.

 

 

RELATIVOS À AGRESSÃO CONTRA OS PROTESTANTES NA ILHA DA MADEIRA

 

 

LISBOA, Tipographia Luso-britânica de W. T. Wood, 28 – Rua direita das Janelas Verdes, 28

 

1875

 

EXPOSIÇÃO DE FACTOS

 

Eu digo a verdade em Cristo, não minto, dando-me testemunho a minha consciência.           

                                                           Aos Romanos,IX, 1.           

 

Havendo sido publicado no dia 25 de Fevereiro próximo passado um oficio dirigido em data de 15 do mesmo mês da parte do Administrador do Concelho a S. Ex.ª o Governador Civil do Distrito, relativo ao Dr. Roberto Kalley, súbdito britânico (Documento n.º 1) e tendo aquele ofício sido subsequentemente seguido de um Edital (Documento n.º 4) de Sua Ex.ª o Governador Civil em data de 17 de Março corrente, censurando em termos fortes a conduta do Dr. Kalley, o mesmo Dr.Kalley julga que o seu carácter pessoal exige que ele publique a seguinte Exposição.

O método mais claro que tem a seguir é, na sua opinião, expor primeiro as medidas que o Governo tem julgado a propósito tomar.

I. No dia 16 de Janeiro passado recebeu o Dr. Kalley um aviso verbal de S. Ex.ª por meio do Administrador do Concelho, ordenando-lhe que não falasse a súbditos portugueses acerca de assuntos religiosos sob pena de ser processado. O Dr. Kalley pediu que se lhe fizesse o aviso por escrito, e que se lhe declarasse sobre que lei se basearia o processo. pois que ele ignorava que tivesse transgredido as leis em ponto algum. A única resposta que recebeu foi também verbal: “Cale a boca, ou será processado.” A este aviso verbal é que se alude no ofício anexo sob n.º 1, como a advertência de S. Ex.ª feita pessoalmente.

II. No dia 20 de Fevereiro postaram-se oficiais de polícia nos diferentes caminhos que conduzem á casa do Dr. Kalley para avisar o povo para lá não ir.

III. No dia 25 de Fevereiro apareceu no Defensor o ofício n.º 1.

IV. No dia 17 de Março foi enviado ao Dr. Kalley o ofício, sob n.º 2, ao qual ele deu a resposta, sob n.º 3.

V. Edital do Governador Civil, n.º 4.

VI. No Domingo, 19 de Março, estacionaram-se oficiais de policia diante da casa do Dr. Kalley, encarregados do avisar a todos os súbditos portugueses, incluindo os que vinham como doentes, para não entrarem nela.

VII.  A ordem, sob N.º 5, transmitida aos Regedores de várias Paróquias e relativa aos Mestres empregados nas escolas do Dr. Kalley, mandando-lhes parar com as suas lições sob pena de prisão, só porque eram pagos por ele, e sem serem acusados de haver inculcado algumas doutrinas erróneas. Esta ordem foi expedida em 18 de Março.

VIII. No Sábado, 25 de Março, os oficiais de polícia ocuparam os mesmos pontos do Domingo antecedente, e avisaram mais de 12 doentes para não entrarem na casa do Dr., além de outras pessoas que vinham buscar remédios, apesar do mostrarem as receitas.

IX. No Domingo, 26 de Março, lá esteve ainda a policia à porta do Dr. Kalley; e querendo entrar por ordem dele uma sua criada, que serve de ama no seu Hospital, a policia lhe proibiu sem que desse o seu nome. Dado ele, entrou ela; mas à saída, eles a prenderam e conduziram à cadeia, alegando que ela dera um nome falso.

X. No dia 28 de Março, foi o Dr. Kalley autuado na Administração Concelho por não cumprir a ordem, que lhe foi intimada pelo Mandado, sob n.º 2.

Enquanto às escolas, o Dr. Kalley apenas dirá que, tendo achado o povo num estado de grande ignorância, estabelecera escolas em diferentes partes da ilha, nas quais mais de 800 adultos tem recebido instrução. Porém nestas escolas foi sua regra constante, nunca empregar outro livro além da Cartilha usual e os Sagradas Escrituras, e todos os mestres e todos os seus discípulos são membros da Igreja romana. As Bíblias e Testamentos empregados são dos traduzidos pelo Rev. Padre António Pereira de Figueiredo, exactamente dos mesmos do que o Governo mandou despachar alguns, livres de direitos, para uso do Clero.

O Edital, adoptando uma acusação contida no ofício, sob n.º 1 começa por afirmar, que S. M. F. a Rainha tem dado a mais séria atenção às representações que tem recebido relativamente ao que ali se chama ‘procedimento abusivo do Dr. Kalley, que se mete a explicar publicamente a seu jeito as Sagradas Escrituras, e a propagar doutrinas ofensivas e contraditórias aos Dogmas essenciais da Religião Católica, Apostólica, Romana, negando a verdade e blasfemando dalguns dos mesmos Dogmas.” O Dr. Kalley declara desde já, que nunca foi, nem ao presente é, da sua intenção ofender de modo algum, nem a S. M. F., nem ao Governo deste pais. Pelo contrario, ele sempre se esforçou, desde o momento em que pela primeira vez pisou o solo desta Ilha, por se conduzir mui pacífica e decentemente, a ponto de ter a honra de receber em Maio 1841 um voto do agradecimento da parte da Câmara Municipal do Funchal, por ter durante mais de 18 meses de sua residência dentro deste concelho, empregado constantemente o seu tempo no que a Câmara se dignou chamar ‘actos da mais desinteressada filantropia, mantendo, á sua custa, escolas de primeiras letras em várias freguesias deste Concelho e Distrito, receitando e ministrando remédios de graça a todas as pessoas que o procuram, sustentando com o seu dinheiro nas imediações de sua casa um Hospital, onde conserva constantemente diversos doentes, lendo e explicando às pessoas que o quiserem ouvir o sagrado texto do Evangelho, e sem tomar parte em polémicas que possam ferir do algum modo o dogma ou disciplina da Comunhão Católica; dissertando principalmente sobre a necessidade de cumprir com os preceitos morais da religião.” (Vide Defensor, n.º 74, de 29 de Maio de 1841.) Nem relativamente ao jus que o D. Kalley tivesse a este elogio, nem enquanto á exactidão do que nele se diz, fará ele observação alguma; mas contentar-se-á com afirmar, que da linha de conduta, que seguia antes da data do Acórdão, pouco se tem desviado depois. Observará também, que S. M. foi, ainda que sem duvida inadvertidamente, mal informada enquanto à sua explicação das Sagradas Escrituras, e a ter ele expressado publicamente opiniões algumas contrarias á Religião do Pais. Ele nunca pregou, ou explicou as Sagradas Escrituras fora. do lugar da sua morada, excepto n’uma só ocasião, sendo presente o Rev. Vigário Francisco J. R. Pereira, o qual publicou uma declaração, e nela disse, que bem longe de ter o Dr. Kalley falado naquela ocasião coisa alguma ofensiva ou ilegal, “felizmente naquela prática, que quase toda consistiu na leitura da Sagrada Bíblia, segundo o que ouvi e me informaram pessoas fidedignas, nada apareceu contrário à sã Doutrina que a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana nos manda crer e ensinar (Imparcial, N.º 129, de Fevereiro de 1848). Sobre este ponto o Dr. Kalley espera que o amor de justiça do Governador o induzirá a esclarecer o ânimo de S. M.

Diz o Edital, que a Religião Católica Apostólica Romana é a Religião do Estado, e que “se bem que pelo Art.º 145, § 4.º da Carta constitucional, ninguém possa ser perseguido por motivos de Religião, isto é somente com, a condição de que se respeite a Religião do Estado; que a conduta do Dr. Kalley é irreverente e injuriosa à Religião do Estado, e mão pode por conseguinte ser tolerada; e que não é sancionada pelo Tratado concluído entre os dois Países, pelo qual é garantido aos súbditos britânicos o livre exercido da sua religião.” O Dr. Kalley pede licença, em primeiro lugar, para se referir ao art. 6.º da Carta constitucional, que faculta aos estrangeiros ‘o seu culto doméstico e particular e também ao § 6. do art. 145 da mesma Carta constitucional, que declara ‘a casa do cidadão um asilo inviolável. É ali que ele tem lido as Escrituras, é ali que ele tem falado sobre assuntos religiosos e ele intimamente crê, que as explicações que tem feito, e as opiniões que tem emitido, têm sido limpas de erro” Porém, como há pontos, sobre os quais as Igrejas britânicas diferem das de Portugal, o Dr. Kalley não goza do livre exercício da sua religião, se lhe é proibida a plena expressão das suas opiniões acerca d’estes assuntos na sua própria casa. Ainda quando pudessem entrar em duvida os seus direitos, considerados meramente’ com referencia à Carta constitucional, ele está convencido, que não poderia acontecer o mesmo, quando fossem considerados com referencia ao Tratado, pelo qual se concedeu mutuamente, aos súbditos do qualquer dos dois reinos, o livre exercido das suas respectivas religiões nos territórios de cada um deles. Ainda mesmo usando da mais plena expressão das suas opiniões na sua própria casa, ele não exerce uma tão grande liberdade como a que é concedida aos súbditos portugueses em Inglaterra. Não somente é permitido ali aos católicos romanos o livre exercício da sua Religião nas suas próprias casas, como também lhes é concedido levantarem, sem o menor obstáculo, qualquer edifício para o seu culto que julgarem a propósito; e nenhum embaraço sofrem os padres católicos romanos, ou outros quaisquer, nos esforços que façam para converterem súbditos britânicos para as suas religiões.

O Dr. Kalley positivamente nega ter falado abusivamente, nem da. Religião do Estado, nem dos meus ministros, e crê do seu dever expor claramente quais as doutrinas que ele tem inculcado.

Primeiramente observará, que suposto tenha sido assim publicamente acusado de ter pregado contra a Religião do Pais, todavia é notável, que nunca ele foi questionado a respeito das suas doutrinas, nem por algum empregado do Governo, nem por pessoa alguma por ele deputada, excepto por S. Ex.ª o ex-Governador Barão de Lordelo, o qual, tendo recebido uma explicação da parte do Dr. Kalley, ficou perfeitamente satisfeito. Mas consta ao Dt. Kalley particularmente, e por pessoas em quem julga dever confiar, que ele é acusado, ainda que não publicamente, de ter ideias heréticas relativamente :- 1.º.à Santíssima Trindade;. 2.º à Virgindade de Maria, Mãe de nosso Senhor Jesus Cristo; 3.º à adoração dos Santos  4.º à adoração das Imagens; 5.º de ter falado com desprezo da Sagrada Comunhão; 6.º de ser protestante.

O Dr. Kalley exporá desde já o que tem ensinado, e depois responderá àquelas acusações.

O Dr. Kalley crê firmemente, e por muitas vezes tem declarado sua crença nas seguintes verdades : 1.º que há um Deus, que é um espírito vivente, possuidor de infinita sabedoria, poder ilimitado, e existência eterna, que olha com infinito desprazer para todos os pecados, porque do contrário não poderia ser infinitamente santo; que é também um Rei tão justo, que todos os actos feitos dentro dos limites do seu Reino hão de receber a sua devida retribuição de prémio ou de castigo; que aquele SER glorioso vê todas as criaturas, e perfeitamente sabe de todas as suas acções, ainda mesmo aquelas que são praticadas nas trevas, porque as trevas não são escuras para Ele (Salm., cxxxviii, 21) ;-2.º que todos tem pecado; que não há homem justo sobre a terra que faça bem, e que não peque (Eccles. vii, 21); nem um só; pois, para o qual, só pelo seu merecimento individual, Deus possa olhar sem desprazer; não há pois nenhum justo (Rom. iii, 10) ;—que Deus, compadecido deste mundo rebelde, proveu um meio de salvar os criminosos da condenação eterna do inferno que a justiça declarava terem eles merecido, o qual foi a morte de seu Filho Jesus Cristo Nosso Senhor, que voluntariamente se entregou a ela, e sofreu a cólera e maldição em que incorrem os homens por causa do pecado. Cristo morreu por nossos pecados segundo as Escrituras (1 Cor. xv, 3) ;-4.º que a sua morte tem suficiente valor para expiar todos os pecados, como Deus diz pela boca de S. João na 1.ª Epístola, i, 7: o sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo o pecado, e isto porque a mesma pessoa, que morreu como homem, é na verdade também Deus. Deus e Homem, duas naturezas distintas estando unidas numa só pessoa; a morte dela (Deus-Homem) foi urna expiação, a qual é de merecimento infinito, porque aquele que se deu por nós é infinitamente precioso ;- 5.º que ele oferece a todos os pecadores a salvação de graça, declarando que: quem nele crê, não é condenado  S. João, iii, 18), mas tem a vida eterna (36) e não morrerá eternamente (xi, 26). Crê no Senhor Jesus, e serás salvo (Actos, xvi, 31). Assim, pois, é a fé que nos salva; e esta consiste em aceitar e confiar no Salvador que Deus mesmo nos oferece ;- 6.º. que todos os que aceitam a Jesus por seu Profeta, Sacerdote e Rei, hão-de viver, e com efeito vivem, uma vida de boas obras. Como seu Profeta, ele ensina isto por escrito, e exemplificou-o com a sua vida; corno seu Sacerdote, deu-se a si mesmo por nós outros para nos remir de toda a Iniquidade, e para nos purificar para si (A Tito, ii, 14);. e como Rei, assim o manda. Se eles, pois, não vivem assim, é por falta de confiança nele como seu Profeta, Sacerdote e Rei. E assim ao segue: pelas obras é justificado o homem, e não pela fé somente (Tiago, ii, 24);-7.º Vem a hora em que todos os que se acham nos sepulcros, ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que obraram bem, sairão para a ressurreição da vida; mas os que obraram mal sairão ressuscitados para a condenação (S. João, v, 28, 29, 30).

O Dr. KALLEY OCUPAR-SE-Á AGORA COM AS ACUSAÇÕES CITADAS.

I. Enquanto à primeira acusação, declara mui solenemente, que crê, e sempre tem ensinado, que há um só Deus, que criou e sustenta todas as coisas; que há três pessoas distintas, o Pai, o Filho, e o Espírito Santo; cada uma das quais é por sua natureza Deus, possuindo todas as perfeições divinas, co-eternas e co-iguais; e que todavia não há três Deuses, mas sim um só Deus distinto em pessoas, um em substância, conforme ao que se ensina nos catecismos da Igreja romana.

II. Enquanto á segunda, ele tem por muitas vezes declarado, que está firmemente convencido, que a bem aventurada Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo era Virgem antes do parto, no parto e depois do parto de Jesus, Salvador do mundo.

III. Enquanto á terceira, ele se referirá ao catecismo publicado por Carlos Joaquim Colbert, Bispo de Montpellier:

“Pergunta.- É permitido adorar a Santíssima Virgem, os Anjos, ou os Santos?

Resposta – NÃO; PORQUE ISSO SERIA IDOLATRIA. A IGREJA NÃO ENSINA, NÃO APROVA, NEM TOLERA UMA TAL ABOMINAÇÃO.

                                                Parte segunda, pag. 110. [i]

O Dr. Kalley nunca disse coisa alguma a este respeito mais forte, do que assim foi dito por um Bispo católico romano. Ele tem por diversas vezes declarado que os homens devem amar, honrar e imitar os santos, mas que estes não tem adoração, como Jesus diz: Ao Senhor teu Deus adorarás, e a ele só servirás. S. Mateus, iv, 10:

IV. Relativamente às imagens, ele tem lido as palavras da Lei de Deus, gravadas em Tábuas de pedra o registadas no Êxodo (xx, 4, 5), que diz: Não farás para ti imagem de escultura, nem figura alguma de tudo o que há em cima no céu, e em baixo na terra, nem de coisa, que haja nas águas debaixo da terra. Não as adorarás, nem lhes darás culto; porque eu sou o Senhor teu Deus, o Deus forte e zeloso, que vinga a iniquidade etc; e outras passagens semelhantes nas Sagradas Escrituras; e também tem repetidas vezes lido aos seus amigos as palavras do Concílio Tridentino, Sessão xxv: Non quod credatur in esse aliqua in eis (i. e. imaginibus) divinitas vel virtus propter quam sint colendæ, vel quod ab sit aliquid petendum, vel quod fiducia in imaginibus sit figenda veluti olim fiebat a Gentibus, quæ in idolis spem suam collocabant.  Esta passagem vertida literalmente, diz: «Não que se deva crer que haja nelas (imagens) divindade ou virtude alguma, que lhes dê jus a serem adoradas; nem que se lhes deva pedir coisa alguma; nem que se deva pôr confiança nelas como antigamente faziam os Gentios, que nos ídolos punham suas esperanças. »

Mais do que isso nunca o Dr. Kalley disse.

V. Enquanto o sacramento da Sagrada Comunhão, o Dr. Kalley tem por muitas vezes declarado, que crê, que Deus está verdadeiramente presente naquele Sacramento; que ele o considera como um poderoso e eficaz meio de graça; e que os emblemas sensíveis, empregados nele, tendo sido estabelecidos por nosso Senhor Jesus Cristo para representar o seu corpo e sangue, «todo aquele que comer este Pão, ou beber o Cálice do Senhor indignamente será réu do Corpo e do Sangue do Senhor (1. Cor. xi, 27), e por outro lado, aqueles que os recebem com fé, alimentam-se verdadeiramente, e de uma maneira espiritual, do Corpo e Sangue de Cristo. Estas ideias não encerram o menor vislumbre de desprezo para com a Sagrada Comunhão. O Dr. Kalley mui positivamente nega ter jamais falado com a menor falta de respeito daquela instituição tão solenemente estabelecida por N. S. Jesus Cristo [ii].

VI.  Relativamente à acusação n.º 6. o Dr. Kalley diz que protesta contra todos os que se atreverem a acrescentar à revelação, que Deus nos deu da sua vontade, pois que o homem não é mais sábio que Deus, nem se deve imaginar que Este pudesse omitir coisa alguma que quisesse ter revelado. Ele acha que S. João debaixo do ensino divino protesta, dizendo “Eu protesto a todos os que ouvem as palavras da [iii] profecia deste livro: que se alguém lhe ajuntar qualquer coisa, Deus o castigará com as pragas que estão escritas neste livro. E se alguém tirar qualquer coisa das palavras do livro desta profecia, tirará Deus a sua parte do livro da vida e da cidade santa, e das coisas que estão escritas neste livro. “ Apoc.  xxii, 18, 19.

Se protestar, como S. João protestou, é ser Protestante, o Dr. Kalley é protestante: aliás, não é.

Se qualquer indivíduo, seja ele quem for, das igrejas de Roma, Inglaterra, Escócia, ou de outra qualquer confiar em JESUS, como seu Salvador, e se esforçar por cumprir os seus preceitos e conselhos, o Dr. Kalley o reconhece por seu irmão.

Não é preciso que o Dr. Kalley toque em nenhum outro ponto, visto que se lhe não faz nenhuma outra acusação. Entretanto observará que se, no exercício do seu reconhecido direito, como cidadão britânico, ele tivesse lido os Artigos e Homilias de Inglaterra, e as Confissões de Fé de Westminster, todos os entendedores não poderiam deixar de confessar, que ele teria introduzido coisas muito mais opostas a Religião d’este Pais, do que nenhuma d’aquelas que ele tem tratado. Ele de todo o seu coração, aprova, e deseja ver realizada a esperança expressada no Edital do Governador: ‘de que o Clero da Ilha se esforçara por rebater (o que chama) as desvairadas doutrinas do Dr. Kalley” porque ninguém mais do que este deseja, que as suas doutrinas sejam passadas pelo toque das Sagradas Escrituras; porquanto é certo, que se elas não puderem sofrer aquele toque, nenhum valor terão.

No oficio sob n.º 1, diz o Adm. do Concelho que, ‘advertido pelas vozes do povo, pelas folhas publicas, e pelas práticas dos Párocos em toda a Província; advertido pessoalmente por ordem de S. Ex.’ (o Governador Civil), e pelos processos começados legalmente contra ele (Dr. Kalley) de que os seus sermões não a causa única dos seus receios e dos públicos incómodos, bastava-lhe (ao Dr. Kalley) recorrer à sua vontade para restabelecer o seu e o publico descanso, desistindo de pregar, respeitando a religião e a Constituição do Estado, e observando ou sagrados direitos da hospitalidade.”

O Edital do Governador diz no mesmo tom: ‘que não contente com propagar o erro, o Dr. Kalley procura transtornar a ordem pública, sem consideração alguma para com a paz do pais onde vive.

Que em tudo isto o Dr. Kalley tem sido injustamente representado, parece ficar já satisfatoriamente demonstrado. Todavia, como asserções tais, especialmente quando dimanadas de autoridades superiores, se não forem contraditas, podem prejudicar não só o seu carácter moral e respeitabilidade, como também os seus interesses: profissionais, ele desde já protesta contra elas, considerando-as como uma medida cruel o injustificável.

É esta a primeira vez que ele tem ouvido mencionar com seriedade num documento publico a voz do povo, ou as observações das gazetas, ou sermões do clero, como fundamentos para se proceder em respeito ao exercício de um direito particular. Ele nega mui positivamente ter tido notícia alguma de se haverem instaurado processos contra a sua pessoa, excepto pelo dito Ofício, sob n.º 1, e ultimamente pela autuação que se lhe fez no dia 28 de Março. Repete, que sempre se tem conduzido pacificamente, e que se por sua causa tem havido alguma aparência de desassossego, tem sido causado por aqueles mesmos, que tinham por especial dever manter a ordem, como se verá pela seguinte enumeração dos factos.

Na noite de 23 de Janeiro, alguma pessoa ou pessoas desconhecidas afixaram um papel na porta do Dr. Kalley, ameaçando mata-lo, se continuasse a falar sobre matérias religiosas. Na noite de 27 do mesmo mês, foi a sua casa atacada, as suas vidraças da parte da rua quebradas por alguma pessoa, ou pessoas desconhecidas. Consequentemente, reclamou o Dr. Kalley no dia seguinte a protecção do Vice-Cônsul britânico, e em resposta se lhe assegurou que a polícia se esforçaria por prevenir que se repetissem aqueles insultos. No oficio, sob N.º 1, diz-se, que a residência do Dr. Kalley era guardada de noite e de dia por oficiais de policia reforçados por patrulhas militares à noite, e que esta guarda ainda continuava à data daquele papel em 15 de Fevereiro passado. Entretanto, durante aquele i intervalo, cometeram-se vários atentados contra a paz pública: O 1.º no dia 29 de Janeiro pela volta das três horas e meia da tarde, quando um Oficial de Diligências procurou entrar violentamente em casa do Dr. Kalley, e não o podendo conseguir, postou-se com outros defronte da porta, e na presença de uma multidão de testemunhas, insultou, na rua pública, da maneira mais escandalosa as pessoas da amizade do Dr. Kalley, que saiam de sua casa. Indo ele em pessoa à porta, o mesmo oficial lhe falou em termos que a decência não permite repetir, e ameaçou-o de ser deitado fora da ilha às pedradas. 2.º Na noite seguinte (30 de Janeiro), coisa de 20 a 30 pessoas encapotadas postaram-se diante da casa do Dr. Kalley, dando gritos horríveis a ponto de o fazerem recear algum ataque declarado, e de induzirem a muitos dos seus amigos da vizinhança a acudirem à sua casa para o defenderem, se fosse preciso.— 3.º Em 5 de Fevereiro passado, o mesmo oficial do governo local postou-se outra vez à porta do Dr. Kalley, acompanhado ao menos por outro oficial, e empregou na rua pública gestos ameaçadoras, falando da maneira mais violenta contra ele. Portanto, ou quando se diz no oficio que a casa do Dr. Kalley era guardada de noite e de dia é falso, ao se esses guardas estavam presentes, deixavam totalmente de cumprir com as suas obrigações. Quem teve a culpa, pode inferir-se da seguinte circunstância; no dia 5 de Fevereiro, e em outras ocasiões, o Juiz Eleito da freguesia esteve presente, e depois assim escreveu ao Dr. Kalley a 9 de Fevereiro passado: ‘Quando disse, que como Juiz Eleito me retirava de minhas obrigações a respeito de V. S.ª, quis dizer, que não recebendo efectiva e positivamente os socorros e providências que exigi, para devidamente, o sem contradição, guardar o sossego da freguesia o prevenir quaisquer rixas, ou motins, como determina a Lei; e vendo que me abandonaram, como fizeram no Domingo de tarde, sem d’isso alcançar satisfação alguma, por isso me retirava; visto que a outros, ainda mais responsáveis do que eu, lhes não importava o que era de sua obrigação guardar.”

Considerando a linguagem indecente e insultadora do oficial para com todos as pessoas que saiam à porta do Dr. Kalley, parece espantoso que da parte d’essas pessoas não houvesse a mínima violência, e a sua paciência é digna dos maiores louvores.

Dá-se a entender no ofício, sob n.º 1, que o Dr. Kalley é Missionário enviado por alguma Sociedade, porém isto nega ele solenemente. Ele não está, nem nunca esteve, desde que pela primeira vez veio a esta Ilha, no emprego, ou debaixo da dependência de Sociedade ou Individuo algum. Não tem recusado receber donativos voluntários em benefício dos pobres, já da parte dos seus amigos portugueses, já dos ingleses, os quais sinceramente agradece; mas excepto da parte dos seus doentes mais abastados a quem ele atende medicamente, nunca recebeu a menor remuneração pelos seus trabalhos na Madeira. Ele é obrigado a mencionar, ainda que não sem bastante repugnância (porque lho podem atribuir a ostentação), que tem atendido o administrado remédios de graça a muitos milhares de pessoas nesta Ilha.

O Dr. Kalley protesta mui particularmente contra uma, que ele não pode deixar de apelidar -.”grande injustiça”— que se lhe tem feito geralmente; “injustiça” que ele confia que o Governo prontamente reconhecerá logo que lhe for apontada. Tem sido declarado criminoso e perturbador da paz pública, não somente sem prova, mas o que é mais, sem processo, e sem ser ouvido em sua defesa. Desde que o Governo deu os primeiros passos a seu respeito, procurou ele saber - que lei tinha infringido—que crime se lhe imputava—que prova havia contra ele. A única resposta que tem recebido foi, “supor-se-lhe um crime, e condená-lo arbitrariamente”.Ora, é um dos primeiros princípios da jurisprudência inglesa, assim como o há-de ser de todos os sistemas justos, que todo o homem deve ser considerado inocente, enquanto se lhe não provar o crime. Não basta que um indivíduo seja acusado por magistrado, ou outras quaisquer pessoas, de ter cometido uma ofensa; porque a ser assim, estaria na mão de qualquer autoridade declarar quem deveria, ou não, ser considerado criminoso; e o governo se converteria em despótico. Todos os ingleses, e até mesmo o mais alto magistrado de Inglaterra, são responsáveis pela sua conduta, mesmo quando fazem uma simples acusação contra alguém; e o conhecimento d’aquele facto é uma das garantias da nossa liberdade.— PRESUME-SE QUE TODO O HOMEM ESTÁ INOCENTE, ATÉ SER CONVENCIDO DE CRIME PELO TRIBUNAL COMPETENTE. —

Nenhum tribunal pronunciou ainda sobre o crime do Dr. Kalley, e ele conscienciosamente crê não ter cometido infracção alguma de lei.

Diz-se no ofício, sob n.º 1: ‘que se têm começado processos contra ele. Se assim é, ainda mais revoltante se torna a injustiça que se lhe faz naquele ofício, no subsequente, e no Edital. A. administração da justiça deve ser pura e imparcial; porém no caso actual, todo o peso do Governo é lançado na balança em prejuízo do acusado -  ele já está julgado com antecipação. Se ele chegar a ser processado, o Juiz e o Júri dificultosamente poderão resistir á influência, não somente do Administrador do Concelho, e da maior autoridade da Ilha, que é o Governador Civil; mas até do próprio Governo da Rainha. Com esta preponderância de autoridade contra si, que probabilidade terá ele de um processo justo e imparcial?

Enquanto aos passos dados para impedir que venha gente à sua casa, ele tem somente a notar, que se a Carta constitucional dá ao Governo um poder tão arbitrário, sujeitar-se-á a este, corno ele tenciona fazer, a outro qualquer acto da legal autoridade. Não pôde, contudo, acreditar, que aquele poder se estenda até o ponto a que tem sido levado; porquanto não somente se impediu a entrada da sua casa aos doentes, que tratava e que vinham vê-lo por sua ordem; mas até a uma senhora que vinha, por convite, jantar com Mrs. Crawford, sua sogra.

O Dr. Kalley está devidamente autorizado pela Escola médico-cirúrgica de Lisboa para praticar como Medico, o esta autorização foi examinado e achada regular pelas autoridades da Madeira; e à vista disto não pode deixar de julgar, que a arbitrària proibição feita aos doentes que a ele recorrem, é uma interferência ilegal nos seus direitos.

Enquanto à ordem promulgada pelo Governo relativa aos mestres de escola pagos pelo Dr. Kalley, se ela é constitucional e legal, por mais que ele lamente este acto de autoridade tão prejudicial ao povo, e destruidor dos seus esforços para o beneficiar, ele será a última pessoa a opor-se-lhe e se ela não é justificável perante a lei, incumbe mais aos interessados a sustentação dos seus direitos, do que ao Dr Kalley interferir a este respeito.

O Dr. Kalley julga, que não pode, de modo melhor terminar estas observações do que servindo-se das palavras de Gamaliel, outrora pronunciadas no Conselho judaico, em respeito às doutrinas dos Apóstolos: «Agora pois enfim vos digo, não vos metais com estes homens, e deixai-os: porque se este conselho, ou esta obra vem dos homens, ela se desvanecerá; porém se vem de Deus, não a podereis desfazer, porque não pareça que até a Deus resistis. E eles seguiram o seu conselho. - Actos, V, 38.

 

Funchal, 31 de Março de 1843.

 

P.S. Depois do Edital do Exm.º Sr. Governador Civil, foi o Il.mo. Sr. Roque C. d’Araújo a casa do Dr. Kalley no Domingo 19,  no Sábado 25, e no Domingo 26 do passado. Foi em consequência autuado, assim como várias outras pessoas, pelo Sr. Administrador do Concelho; e sendo o negócio levedo ao Poder Judicial, houve a decisão abaixo transcrita, enquanto ao Sr. Araújo, publicado no Defensor, n.º 170; e consta, que a respeito dos outros autuados houvera o mesmo resultado.

 

1.º Auto.

 

“Se as intimações fossem feitas em virtude da lei, haveria desobediência, porém não há lei alguma que proíba um cidadão ir a casa doutro; pelo contrário, isto é uma faculdade que provem da Liberdade Civil, a qual não pode ser tirada nem coarctada por simples vontade da autoridade, porque está garantida na Carta Constitucional; por isso nada promovo’ .- Funchal Ocidental, 22 de Março de 1843.

José Júlio Rodrigues.

 

Despacho.

 

‘Não há lugar a procedimento Criminal à vista do Requerimento do Ministério Público, e D. fique no Cartório do respectivo Escrivão. Funchal Ocidental, 23 do Março do 1843.—Coelho.”

 

2.º Auto.

 

“A matéria deste auto é a mesma doutro sobre que já dei a minha opinião; por isso se servirá V. S.ª ordenar que se junte este àquele e se lhe dê o mesmo destino, distribuindo-se quando ainda o não esteja.-Funchal Ocidental, 29 de Março de 1843.-José Júlio Rodrigues.

 

Despacho.

 

“Na forma requerida pelo Ministério Publico.-Funchal Ocidental, 30 de Março de 1843.- Coelho”

 

 

Não obstante esta decisão, a Polícia postou-se de novo na porta do Dr. Kalley no dia 2 do corrente, e intimou a todas as pessoas portuguesas, incluindo dois servos seus, e o portador de uma carta, para que não entrassem.

Funchal, 5 de Abril de 1843.

 

 

 

Documento. N.º 1.

 

Administração do Concelho do Funchal—2.ª Repartição.

- Il.mo. e Exm.º Sr. - Tendo-se pronunciado fortemente a opinião pública contra o Dr. Roberto Reid Kalley, Médico e súbdito britânico, por ter ultimamente ousado pregar entre nós contra a Religião Católica Apostólica Romana, pediu esse estrangeiro por via do seu Cônsul, que se desse protecção à sua casa para afastar dela qualquer insulto. Tem sido desde então guardada a residência do Dr. Kalley de dia e de noite por gente da Polícia com reforço de patrulhas militares à noite; e protegido assim, continua os seus sermões aos rústicos e incautos que tem sabido atrair; parecendo portanto que se empenha em procurar e aumentar a indisposição pública, e que se serve da protecção para ofender os protectores.

Advertido pelas vozes do povo, pelas folhas públicas, e pelas práticas dos nossos Párocos em toda a Província, advertido pessoalmente por ordem do V. Ex.’ e pelos processos legalmente começados contra ele, de que os seus sermões são a causa única dos seus receios, e dos nossos incómodos, bastava-lhe recorrer à sua vontade para restabelecer o seu e o nosso descanso; bastava-lhe não se obstinar contra tantas advertências, desistir de suas catequeses, deixar de ostentar em terra de Cristãos o espírito dos antigos mártires em terra de infiéis, - respeitar a religião o a Constituição do Estado,—observar os sagrados deveres da hospitalidade.

Ele porém não quer suspender sua carreira; exige imperiosamente que as Autoridades lhe guardem e defendam sua casa e pessoa para lhe entreterem o gosto de pregar contra a nossa Religião, e de livremente nos ofender.

Sua vontade tem sido cumprida; todos os meios se tem empregado para que nenhuma violência se pratique contra o perturbador da nossa tranquilidade, o só a Lei o puna; rondas civis e militares velam toda a noite à porta do sua casa suportando quedas todo o rigor da estação.

Tanta docilidade da parte das Autoridades, tanta prontidão e esforço para manter a ordem, e cumprir a lei, deveriam ensinar o Dr. Kalley a ser também dócil connosco, cedendo a tantas advertências, e afastando dos empregados e do povo, os trabalhos, desassossego e incómodos de que só ele é causa, sem missão legitima.

Mas já que ele se esquece do que por muitas e mui respeitáveis considerações deveria ter presente, rogo a V. Ex.’, a bem do sossego d’este Concelho, que se sirva autorizar-me para lho lembrar por via do seu Cônsul, empregando mais este meio brando e delicado de o chamar a seus deveres, e de prevenir a continuação das consequências de seu desautorizado e ofensivo procedimento, que com razão se antolham como funestas. Deus guarde a V. Ex.ª. Funchal, 25 de Fevereiro de 1843.- Il.mo e Exm.º Sr. Governador Civil d’este distrito. O Administrador do Concelho interino, Valentim Mendonça Drummond.

Está conforme.—O Escrivão da Administração, João Accioly de Noronha.

 

Documento n.º 2

 

João Chrysostomo Ferreira Uzel, Administrador do Concelho do Funchal, Província da Madeira, &c. Em virtude das ordens que recebi do Exm.º Governador Civil deste Distrito em Ofício expedido pela 2.ª repartição, L.º 5, N.º 351, mando ao Oficial de Diligências desta Administração, Bernardino Roiz Pereira, que intime ao Dr. em Medicina Roberto Reid Kalley, da Nação britânica, morador no caminho do Monte, freguesia de S. Luzia, para que não continue a admitir em sua casa reuniões de súbditos portugueses, nem a dirigir-lhes práticas, palestras ou discursos sobre matérias religiosas em sua dita casa, ou fora dela. O que cumpra. Funchal, 16 de Março de 1843.— Eu, João Accioly de Noronha, Escrivão da Administração, o escrevi. —João Chrysostomo Ferreira Uzel. —Bernardino Roiz Pereira, Oficial de Diligências.

 

 

 

Documento n.º 3

 

RESPOSTA (Tradução.)

 

Senhor. Tenho a honra de acusar a recepção da cópia de uma ordem de V. S.ª em data de 16 de Março corrente, que diz expedida em conformidade com as determinações de S. Ex.ª o Governador Civil do Distrito; pela qual, se bem a entendo, me é proibido – 1.º admitir na minha casa reuniões de súbditos portugueses; e 2.º dirigir a súbditos portugueses práticas, palestras ou discursos sobro matérias religiosas, ou em minha casa ou fora dela. Enquanto à primeira parte da ordem, peço licença, com todo o respeito, para perguntar de que fonte deriva S. Ex.ª a autoridade para me proibir receber na minha casa a quem eu quiser? Tenho examinado o Tratado ultimamente concluído entre o Governo português e o de S. M. britânica, assim como a Constituição, ora em força neste pais, e não me é possível descobrir, nem em um, nem em outra, o menor direito para uma tal proibição. Enquanto à segunda parte da ordem, em primeiro lugar julgo ter jus a fazer igual pergunta; porquanto me parece que, suposto eu pudesse vir a ser merecedor de castigo, se infringisse as leis (o que não sei que tenha feito até agora), todavia enquanto as não infringir, tenho todo o direito à liberdade, garantida pela Constituição a todas as pessoas, de livremente expressar as minhas opiniões. Outrosim reclamo o direito do expor francamente, em minha própria casa, os meus pensamentos sobro todo e qualquer assunto, seja ele religioso ou de outra qualquer qualidade, estejam ou não presentes, pessoas naturais desta Ilha, e desde já protesto contra todo o ataque que se fizer à minha liberdade neste ponto.

Fazendo estas observações, peço a V. S.ª, que acredite que não pretendo em coisa alguma faltar ao respeito que devo ao Governador, nem a V. S.ª, para com os quais desejo expressar a minha alta consideração. Sou,

 

 

Senhor,

Com todo o respeito, &c.

Roberto Reid Kalley

17 de Março de 1843

 

 

Documento n.º 4

 

EDITAL.

 

Domingos Olavo Correia de Azevedo, Bacharel formado em leis pela Universidade de Coimbra, Comendador da Ordem de Cristo, Governador Civil do Distrito do Funchal, &c.

Tendo S. M. F. a Rainha prestado a mais séria atenção às representações que recebera sobre o abusivo procedimento do Dr. Roberto R. Kalley, residente neste Concelho do Funchal, o qual explicando publicamente e a seu jeito as Sagradas Escrituras, tem propagado doutrinas ofensivas e contraditórias aos dogmas essenciais da Religião Católica Apostólica Romana, que professamos, negando o verdade, e blasfemando dalguns dos mesmos dogmas; E tendo outrosim a Mesma Augusta Senhora, expedido a esta Governo Civil os mais positivas e terminantes ordens para fazer proibir e embaraçar as práticas, palestras e discursos daquele estrangeiro, não consentindo que mais se realizem os concursos e ajuntamentos em que ele propaga doutrinas condenadas pela Santa Igreja, e contrárias à nossa Religião. Faço saber aos habitantes deste Distrito, que tenho não só tomado as medidas necessárias para fazer prontamente observar as determinações de S. M. que deixo mencionadas, mas também hei recomendado às autoridades competentes hajam de proceder inexoravelmente contra todo aquele que de qualquer modo apoiar criminosamente os heréticos intentos do Dr. Kalley. Verdade é que este cismático tem podido atrair prosélitos dentre os desvalidos e ignorantes, levando-os com demonstrações de caridade e beneficência; sendo por isso de esperar que rebatidos pelo nosso clero em desempenho dos seus deveres, os desvairados princípios derramados pelo mesmo cismático, se consiga prontamente desviar esses incautos e menos ilustrados, do abismo em que se precipitam.

Por extremo tem sido notável o procedimento do Dr. Kalley; porquanto não só pretenda com’a propagação de seitas erróneas desviar do verdadeiro caminho da salvação este Povo Católico Romano, virtuoso e respeitável por seu amor e cordial veneração pela religião dos seus Maiores, mas tenta, sem consideração alguma para com o pais onde vive, transtornar a ordem pública, desacatando o objecto da nossa primeira contemplação!

Nesta colisão, pois, forçoso é proceder contra tamanha ousadia. Pelo artigo 6.º da Lei Fundamental da Monarquia, a Religião Católica Apostólica Romana é a Religião do Estado, e como tal, protegida pelas leis do País, deve ser desagravada pela Autoridade, de todas as agressões e ofensas com que a pretendam destruir; e se bem que a mesma Lei diga no art. 145, § 4.º: “Que ninguém pode ser perseguido por motivos de religião” todavia ali mesmo se impôs a todos de respeitar a do Estado, e só assim lhes é garantida a liberdade de consciência. Em tais circunstâncias sendo inegável que no procedimento do Dr. Kalley se encontram factos de irreverência e injúria da Religião do País, não podem ser estes tolerados pelo Governo, e como tais, são também reprovados pelo Tratado celebrado com a Grã-Bretanha e ratificado em 29 de Julho de 1842, o qual assegurou, sim, aos súbditos britânicos o livre exercício da sua religião, mas não lhes deu o direito de pregarem suas opiniões religiosas, e de as derramarem em Portugal e seus domínios com detrimento da Religião do Estado, nem lhes permitiu a faculdade de fazerem prosélitos, agredindo impunemente a mesma Religião.

Por todos estes motivos chamo a atenção dos habitantes deste Distrito sobre tão importante matéria, assegurando-lhes que serei enérgico e terminante na pontual observância das leis do País, e que farei punir implacavelmente aqueles, que infringirem e menoscabarem as mesmas leis. Suscito também em particular a atenção daqueles incautos que inconsideradamente se hão deixado levar das stolidas doutrinas, propagadas nas práticas do Dr. Kalley; espero que prestando madura reflexão à gravidade de seu errado procedimento, se desviem da cega carreira que começam a trilhar, abraçando falsos princípios diametralmente opostos à nossa Religião.

Palácio do Governo Civil no Funchal, aos 17 de Março de 1843.- Domingos Olavo Correia de Azevedo.

 

Documento n.º 5

 

Cópia da ordem aos Regedores.

 

V. S.ª apenas receber esta, passará a intimar na presença de duas testemunhas, quaisquer Professores ou professoras das Escolas de Primeiras Letras, que existam nessa paróquia, pagas pelo Sr. Dr. Roberto Reid Kalley, da Nação britânica, para que não continuem a ensinar pessoa alguma, e quando depois de recebida a intimação, conste a V. S.ª que eles continuam, V. S.ª mos enviará a esta administração acompanhados de dois cabos de polícia.

V. S.ª me dará conta até segunda feira próxima da execução da presente ordem, mencionando as pessoas que em virtude dela houver intimado. Deus guarde a V. S.ª.

 

João Chrysostomo Ferreira Uzel,

 

Administrador do Concelho

 

 

A Exposição publicou-se primeiro em Funchal no ano de 1843.

NOTAS:

[i]  O Catecismo do Bispo de Montpellier foi impresso em Lisboa em 1776, com licença da Mesa Real Censória.

[ii] Vendo que alguém tem dito que o Dr. Kalley tem proibido vir o Sacramento ao seu hospital, julga ser do seu dever publicar o testemunho seguinte:

“Gerardo José de Nóbrega diz, que tanto quanto ele sabe, o Dr. Kalley nunca proibiu o Sacramento de vir a qualquer doente, que o desejava no seu hospital, nem proibiu qualquer rito religioso que qualquer doente ou parente do doente pedia.

(Assinado) Gerardo José de Nóbrega. Testemunhas, William Fullerton, Fred. D. Dyster

Outros testemunhos iguais são assinados pelo dono da casa, o Sr. Francisco Xavier, e pela ama e sua filha.

[iii] Vê-se dos versos 1 e 3 e outros do cap. XIV da 1.ª Epist. de S. Paulo aos Cor. que as palavras “profecia” e “profetizar” têm o sentido de “ensino” e “ensinar”.