8-3-2009

 

LITERATURA E BELAS-ARTES

 

EPÍSTOLA

 

ao Reverendo Senhor José Agostinho de Macedo

 

 

 

Tu nihil in magno doctus reprehendis Homero?
Horat. Lib. 1. Sat. 10 - v. 52.

 

José, autor de versos bem rimados, [1]
Na lusitana incude assaz batidos,
E com lima subtil alguns limados:

 

Que louvores, José, te são devidos
Pelo longo romance que fizeste
Em doze cantos orientais seguidos?

 

Como afoito de Homero a par correste?
Que pincho sobre o épico latino?!
Que tombo ao torto português não deste?!

 

Eu não sei como ergueste o épico sino;

Mais que sete da alfândega tens força,

Pois que levaste o grão badalo а pino:

 

E não se há-de encontrar, não, quem te torça?

Ora eu sempre vou dar-te uma carreira,

Bem que tu pulo dás maior que corça.

 

Olha; se eu te galgar pela dianteira,

Eu te farei parar, pois que insensato

Corres tanto pela íngreme ladeira.

 

Como aqui te pilhei, eu vou-te ao fato.

Tu, José, queres ser cisne beócio?....

Tu, que em tanques comuns grasnando és pato?

 

Para boa te deu, José, teu ócio:

Quanto te era melhor compor em prosa

Coisinhas de fazer algum negócio!

 

Tu embocar a tuba majestosa?!...
Nem gaita de pastor tocar tu podes
Pela falda do Pindo pedregosa.

 

Para poeta tu não tens bigodes.
Se asas não te quis dar a mãe natura, [2]
Porque de cera as ícaras sacodes?...

 

Temerário subiste à mesma altura
Do censurado torto; mas baqueias
De trambolhão na mesma audaz censura.

 

Tu podes censurar mil epopeias,
Mas fazer uma não. O teu Oriente
Voa pesado, opresso de cadeias. [3]

 

Camões, águia imortal, quando ergue a fronte

Emboca a tuba d'oiro, e as asas bate,

Vai no disco poisar do sol ardente.

 

Nasceu vate, foi vate, e há-de ser vate,
Enquanto viva luz der Febo ao mundo,
Sem seu nome morder o cão que late.

 

Se a muitos imitou, também facundo
A muitos excedeu no dom divino
Dum estro, que talvez não tem segundo.

 

Se ele ao grego cantor, cantor latino
Muitas vezes seguiu, com seu compasso
Mediu as dimensões com gosto e tino.

 

E tu, José... Mas vamos passo a passo.

Quem seguiste no teu poema chamado?

Ah, meu padre, que assim me cais no laço!

 

Não foi pelo caminho, já trilhado  [4]

Do censurado vate, que levaste

Segunda vez o Grama decantado?

 

Diz, podes negar que não furtaste
Muito pano a Camões, com que vestiste
O façanhoso Oriente, que geraste?

 

Mas ah! quão fracamente tu cerziste
Os furtados remendos! As costuras
Da remendada capa descobriste.

 

Tu, censurando as imortais pinturas,
Divinas cópias de um pintor famoso,
Foste depois fazer mil borraduras.

 

Seja a primeira um sonho venturoso
Do rei, amo do herói, que Ásia enfeitada
Viu a seus pés depondo ceptro honroso:

 

Ora diz, meu padre, esta dedada,
Ou borradela, que em teu quadro deste,
Ao nosso grão cantor não foi furtada?...

 

Dos venerandos rios a colheste: [5]
Tu as guardas viraste à fechadura,
Pois fazê-la de novo não pudeste.

 

Seja a segunda a célebre pintura [6]
Do bom velho de aspecto venerando,
Que a tua pena roubou a quem censura.

 

Mas vê com que energia meneando
Por três vezes a fronte encanecida
Melhor que o velho teu foi declamando.

 

E aquela pincelada da fugida,

Que o levita profético lançara

Julgando não seria pressentida?...

 

E pensavas, José, que me escapara

Tapar со' as mãos o ouvido o moiro imundo, [7]

Que a Camões, canto dois, o teu bifara?

 

E o cabo austral, medonho e furibundo,  [8]
Transformado na feia idolatria,
Que fizeste surgir do pego fundo?

 

Este furto, José, não se faria
Ao gigantão dos dentes amarelos?
Eu não sei com que cara andas de dia.

 

No teu quadro ias dando uns traços belos;

Mas, como foste sempre um mau padeiro,

Amassaste a farinha co'os farelos.

 

Galo, que canta tanto em seu poleiro,
Faz tentar a raposa, quando passa,
De assaltada Ihe dar no galinheiro.

 

Mandam as musas que eu justiça faça.
O engano de Satan na ilha encantada
[9]
Não é o mesmo engano de Mombaça?

 

Naquela do anjo mau acção danada

O justo Henrique mostra ao luso Gama;  [10]

Nesta Mercúrio aponta-lhe a cilada.

 

E o fogo, que na aldeia acende a chama,
Não é o mesmo logo que tu viste 
[11]
Ateado em Camões na seca rama?

 

Ora repara bem como caíste
Também, padre José, censor ufano,
Na mesma cova que em Melinde abriste.

 

Ao velho rei insone melindano  [12]
Como Camões a história não contaste
Da fundação do reino lusitano?

 

Porém quão secamente Ihe narraste

Dos nossos lusos reis a heróica história !

Como com ela ao sono o convidaste....

 

O caso triste é digno de memória  [13]

Passaste, como gato passa as brasas,

E outros, que aos reis dão fama, e ao torto glória.

 

Mas os patos só dão voadelas rasas;
As altas são dessa ave, que alevanta
Sobre o disco do sol as pandas asas.

 

Camões dos lusos reis a história canta,
E tu dos lusos reis a história contas
Teu Gama narra só, e o outro espanta.

 

E as formigas, que tu, tontinho, apontas  [14]

Entre as comparações também roubadas?...

E de fazer o mesmo não te afrontas

 

Olha que tão famosas pinceladas

Vais dando em teu painel! que finas tintas

Por tua mão grosseira esperdiçadas!

 

Para que tu, José, me não desmintas,

É que te vou fazendo apontamentos

Dos furtos de Camões, com que tu pintas.

 

O teu Gama lutou co'os mesmos ventos:
Do Gama de Camões não é diferente,
Senão em ser mais pobre de ornamentos.

 

E foi isto compor originalmente?  [15]
Não havendo Lusíadas, decerto
Não vinha à luz o celebrado Oriente.

 

E foi isto fechar livros esperto  [16]
Para compor, sem ver, o teu poema?
Ora sempre o Camões deixaste aberto.

 

De teu longo sermão foi este o tema;
E para nele teres venda boa
A censura, meu padre, foi sistema.

 

Fugiste dos parceis; deste co'a proa  [17]
Nos escolhos, que о torto embicar fora;
Não sei como surgiste à plaga eoa.

 

Mas paremos aqui; vamos agora

Tesourar no romance um bocadinho;

Tem paciência, José, já que és tesoura.

 

Isto acontece àquele que é daninho;
Pois que, tendo de vidro o seu telhado,
Vai atirar со' a pedra ao seu vizinho.

 

Primeiramente o título foi dado
Contra a melhor opinião corrente, 
[18]
Por ser da acção e não do herói tirado.

 

Faltou depois no façanhoso Oriente
A invocação também, regra prescrita
[19]
N’alta epopeia ao vate inteligente.

 

Qual é a musa tua, que te incita
Ao épico furor? Mas um romance
De auxílio divinal não necessita.

 

E queres que o leitor não durma, e canse

Co'a narração monótona que fazes,

Sem encontrar um pouco onde descanse?

 

Os episódios todos, que tu trazes,

São à força de malho ali metidos;

De o leitor alegrar não são capazes.

 

São férreos, secos são, nunca floridos,

Não são filhos do génio, são bastardos;

Vêm para ali os pobres constrangidos.

 

Os marinheiros teus, os teus soldados

Nunca têm um deleite em mar bonança

Co' a narração de feitos sublimados.

 

Enfastia, aborrece, amarga e cansa

Longa viagem ao triste navegante,  [20]

Se a algum prazer no mar a mão não lança.

 

Que aventuras o teu Quixote andante,

E os seus Sanchos encontram nas florestas,

E nos cerros de assombro nigromante?

 

Logo ao primeiro desembarque entestas

Ao teu herói co'a colossal figura,  [21]

Que no alto cerro aos nautas manifestas.

 

Quem poria esta estátua em tanta altura

Para o Tejo apontando? e quem na base

Gravaria a profética escritura?

 

Mago vate inventor, magias faz,

Nigromâncias fatídicas tão belas

Para o teu grão romance arrasta, e traz...

 

E o portentoso tríduo das donzelas
Pretas, que iam no fogo a ser lançadas 
[22]
Co' a carapinha ornada de capelas?

 

Se não fossem as lúcidas espadas
Dos lusos em favor da natureza,
Não livrava Veloso as desgraçadas.

 

Nem se a Viúva Malabar francesa
Te não lembrasse esta aventura andante,
Não tinha o teu Quixote esta alta empresa.

 

E a outra tal da negra Unhamba amante,
A quem os dois pretinhos se votaram 
[23]
Por negro fado e negro amor constante?

 

Por voluntária súcia se mataram
Todos os três amantes negregados.
Que terno raro os nautas dois toparam?

 

Todos os teus pincéis são ensopados,
Meu padre, em negra tinta: em lindas cores
Nunca uma vez sequer serão molhados?....

 

Lá vai Veloso e os seus exploradores
O templo descobrir no canto quinto
Dos mausoléus dos reis, e seus horrores.

 

Este dos mortos funeral recinto,
E o seu bonzo ancião foi furtadela
Que tu fizeste a Fernão Mendes Pinto. 
[24]

 

A pincelada de Lindara bela,
Que no grão mausoléu inchado deste, 
[25]
Foi tua, que eu conheço a borradela.

 

Sempre és bem córneo ! E coração tiveste

Em fazer com que o rei matasse a amante?...

Dar-lhe outra volta, padre, não pudeste?

 

Não vês que da natura está distante

Sem choque de paixão tão pronto lance?

Ceder de a pôr no trono era bastante.

 

Porém importa pouco que eu me canse

Em te inspirar ternura: é vil empresa;

Deixemos tal, tornemos ao romance:

 

Em tão comprida história uma beleza

Não se encontra sequer, nem que digamos:

Benza-te Deus, José, que tens viveza.

 

Ora um pouquito ver agora vamos
Todo o histórico fio: eu não diviso 
[26]

Coisa nova; debalde a procuramos.

 

Tu tens erudição, tu tens juízo;  [27]
Não to nego, José; mas não tens gosto ;
És monótono sempre em teu repiso;

 

Não tens outro bordão nem outro encosto:
Os vindouros sucessos do Oriente
Mudam de personagem e não de rosto. 
[28]

 

Sonha lá Dom Manoel: Ásia potente [29]

Lhe aponta logo ali glória futura,

E o mesmo faz também o anjo esplendente. [30]

 

Em dois sonhos depois Henrique augura
As ditas orientais, e Ihe repisa 
[31]
Na Índia ao Gama teu lusa ventura;

 

O mesmo em sonho o Samorim divisa,  [32]
Em sonhos Alexandre ao Gama fala, 
[33]

E S. Tomé o mesmo profetiza.  [34]

 

No princípio em Belém já se não cala
O levita ancião; iguais proezas 
[35]
Aos nautas vaticina em voz que estala.

 

No pedestal da estátua aos portugueses
Acções orientais se vaticinam
[36]
Em velhas letras garrafais chinesas.

 

Enfim por toda a parte se amotinam
As proféticas ditas lusitanas, 
[37]
Com que tanto as cabeças se amofinam.

 

Enfastiam quem lê tantas indianas,
Repisadas acções, mil vezes ditas
Por bocas divinais, bocas profanas.

 

E és tu, ó padre meu, esse, que gritas
Tanto contra Camões, que degredá-lo
Do Parnaso, onde mora, premeditas?

 

É ele o historiador, ou tu? abalo  [38]
Te não dá de cair nesta incoerência?
Qual dos dois narra mais? pois não me calo;

 

Eu já agora tomei por penitência
De ler até ao fim o teu Oriente;
Hei de falar verdade, tem paciência.

 

A teu longo romance impertinente
A conta não farei, qual tu fizeste 
[39]
Ao poema de Camões erradamente.

 

Tu, por fazê-lo história, Ihe abateste

O melhor que ele tem de alta poesia,

E mesmo assim mordê-lo não pudeste.

 

Eu sei contar, José; também podia

Muita coisa abater no teu, se história

Ele não fosse já sem mais valia.

 

E a escritura, que o Gama na memória  [40]

Ao Samorim pagão meter pretende?

É maré de chegar à palmatória.

 

Este longo sermão não compreende

Cento e meio de oitavas enfadonhas?

Chega a mão, meu José, leva, e aprende:

 

E quantas têm os cantos, em que sonhas?

E as tuas narrações a quanto montam?

Defeitos, que tu tens, noutro não ponhas. [41]

 

Noventa oitavas, padre meu, se contam

Na profecia última do santo

Apóstolo Tomé, que bem se apontam. [42]

 

Duzentas e sessenta e cinco tanto

Somam tuas proféticas estâncias: [43]

Testemunho, José, não te levanto.

 

Têm teus sonhos as mesmas concordâncias,

Têm o mesmo nível as profecias,

Curtas de umas a outras nas distâncias.

 

E és tu, ó padre meu, tu que avalias

O poema de Camões? tu que tropeças

Pior, muito pior, nas mesmas vias?

 

E és tu, que aos céus os voos arremessas?

Cisne, que espaços não trilhados pisa?  [44]

E bem que agora em trambolhão os meças.

 

De Calecut no porto finaliza  [45]

Toda a épica acção do teu romance;

Voltar à pátria o Gama não precisa.

 

Deste descobrimento o heróico lance

Não se soube em Lisboa. Esta certeza

Ficou só, meu José, ao teu alcance.

 

0 Tejo viu sair com gentileza

Por sua foz o Gama belicoso,

Mas té agora jejua o fim da empresa.  [46]

 

E acaso julgas tu não ser forçoso
Ser o rei, que empreendeu tão alto feito,
Sabedor nesta acção do fim ditoso?

 

Ora confessa pois que não tens jeito,
Meu padre pregador, para poeta,
Bem que mordaz a declamar afeito.

 

Eu bem previ que se virava a seta

Contra ti mesmo, que atiraste ao torto,

Quando intentaste transcender-lhe a meta.

 

Quiseste a fama enegrecer dum morto,
Que em três séculos quase tem luzido
Da eternidade no seguro porto. 
[47]

 

Quiseste o nome seu ver abatido,
E remontar o teu n’alta epopeia,
Que julgaste melhor ter concebido:

 

Vã presunção de alucinada ideia
Os teus olhos vendou. Assim Faetonte
Tontinho se abrasou na luz febeia.

 

Subiste ao pico do Pierio monte,
Tentando derrubar Camões do cume;
Mas caíste de lá quebrando a fronte.

 

Ora pois, meu José, perde o costume

De satírico ser, pois tens borbulhas

Muitas para cortar com férreo gume.

 

Tu tens-te feito um agressor de bulhas; [48]

Pois na pousada idade tens mania

De andar feito malsim fiscal de grulhas.

 

Trazes tão embrulhada a fantasia,

Que do prefácio teu no fim mentiste

Em seguir como Tasso a recta via. [49]

 

Se do Tejo com teu herói saíste,

E com ele por fim lá não entraste,

Como a ordem da história então seguiste?

 

Que vergonha, José !... e censuraste
O divino Camões?!... tu plagiário, 
[50]
Que os melhores adornos Ihe furtaste?

 

Ora põe para ali esse vestuário,
Que é alheio também; despe-o na praça,
Já que larápio és, meu censor vário.

 

Quem de Alemena ao filho arranca a maça?

Quem o louro a Camões da fronte arranca?

Que temerário pode haver que o faça?

 

Não se assustam os dois dessa carranca,

Que vê o alheio argueiro. O teu Oriente

Em seus olhos não vê a grossa tranca?

 

Tudo o que nele é mau é propriamente
Parto do teu bestunto anti-poético, 
[51]
E o bom é de Саmões, furto evidente.

 

Ora pois, se morrer não queres etílico,
Vomita para ali esta verdade,
Quo eu já não posso dar-te mais emético.

 

Se de fazer poemas tens vontade,
Compõe outra famosa burricada 
[52]
Que ali podes zurrar com liberdade:

 

Esta, epopeia, sim, não foi furtada;

Tu tens a glória de cantar os burros,

És original cantor dessa burrada.

 

E o principal herói de eternos zurros.

 

Francisco Joaquim Bingre (Francélio Vouguense)

 

 

NOTA

 

Esta Epístola de Bingre a José Agostinho de Macedo, ainda que tenha um ou outro verso deselegante, é todavia de merecimento ; conceituosa sem pedantismo, fluente e correcta na locução, uniforme no pensamento. 0 estilo modela-se pela ideia; eleva-se como a águia quando fala de Camões, ou abate-se rasteiro e popular quando trata de Macedo. Ali roça pela majestade épica, aqui desata-se no riso da sátira. É sisudo e grave, ou gracioso e folgazão consoante seu particular sujeito.

0 Cisne do Vouga (assim é geralmente denominado) nasceu a 9 de Julho de 1763 e faleceu a 26 de Março de 1856. Foi um dos fundadores, senão o principal, da segunda escola arcádica, a que entre outros pertenceram Bocage (Elmano Sadino) e José Agostinho (Elmiro Tagideu). Este último assim o aprecia: «bom poeta e judicioso homem...no qual a capacidade natural supria todos os estudos. »

A sua biografia, acompanhada do seu retrato, se pode ver no Archivo Pitoresco de 1861, escrita pelo sr. Inocêncio Francisco da Silva, que também no seu Diccionario Bíbliographico dá dele curiosas noticias. Vários jornais têm apresentado algumas роеsias suas, e ainda há pouco a Folha dos curiosos (n.° 3) publicou uma decima inédita. E também dizem que vai muito brevemente sair à luz em dois grossos volumes a colecção completa das suas poesias, que juntara o seu amigo, hoje também falecido, Calisto Luis de Abreu.

A censura dirigida a Elmiro é severa, mas merecida. Camões foi grande, Macedo atrevido; e o atrevimento dum tamanho como o génio do outro. O autor do Oriente silvava como a serpe para que a águia a alevantasse nas garras. É natural; cada Homero teve sempre o seu Zoilo.

Mas sejamos justos; o padre José Agostinho de Macedo foi benemérito das letras pátrias. Sem fôlego bastante para embocar a tuba épica, descomedido e até desbragado na sátira, era ameno e apreciável no género didáctico, como mostram muitas das suas produções em prosa e verso. O futuro há-de fazê-lo mais conhecido do que é hoje, e colocá-lo em lugar honroso na galeria dos bons escritores portugueses. Não se pode chamar despiciendo ou trivial o autor desta formosa descrição da criação das nuvens e das chuvas e regresso das águas para o mar:

 

O luminoso sol ao vasto oceano
Rouba, em vapor subtil, cerúleas ondas,
No seio as fecha de delgados ares;
Rarefaz-se o vapor, tolda-se o dia;
Sobre as asas do sul volantes nuvens
Correm, lançando do medonho seio
A chuva salutar que a terra ensopa:
Chega, calando, ao coração dos montes,
E nas vastas entranhas cavernosas,
Da própria gravidade as leis seguindo,
Como em vasto depósito se ajunta;
Pouco a pouco, filtrando se, rebenta
Das raízes de alpestre serrania,
Escorrega, e borbulha entre rochedos.
Pobres, sem nome, incógnitos regatos
Por entre as pedras murmurando correm;
Vê-se no fundo d'água a mole areia;
Preguiçosa corrente os troncos beija;
Mas bem depressa se entumece, e brame,
Pelos nervosos campos derramada,
E na passagem rápida incorpora
Em si filtradas águas doutros montes,
Que vêm, como tributo e feudo humilde,
Mais engrossar-lhe a cristalina veia.
Crescem-lhe as ondas, cresce-lhe a soberba:
E já rio caudal, tem nome e fama;
Inunda, fertiliza o campo extenso;

Seu leito é largo e fundo, e sobre a espádua
Do grão peso orgulhosa às mãos sustenta,
E a majestosa marcha então suspende
Quando no mar se lança, e se confundo
No vasto império das amargas ondas
.

 

Como é magnífico e majestosamente onomatopaico este retrato do Leão:

 

Menor em corpo, em ânimo mais forte,

Ruge o feroz Leão, duro monarca,
Que funda no terror seu ceptro e trono.
Seus rugidos horrísonos rebramam
Nas tristes solidões d'África ardente,
Onde de Zara os areais refervem.
Bate co'a longa cauda um lado, e outro;
No musculoso colo lhe flutua
Emaranhada juba; os vivos olhos
Despedem mil reverberos de fogo:
Sacode, eriça o pelo, e na espantosa
Cova medita o crime, e sai bramindo,
E das fauces recôncavas derrama
Espuma em borbotões na área adusta.

 

Relevem-se-nos estes extractos, que devem ser bem conhecidos dos leitores do Instituto; mas, sendo o nosso padre tão maltratado na Epístola de Bingre, bom é que se conheça que o diabo nunca é tão feio como o pintam.

O terceto XVI da Epístola foi composto primeiramente assim:

 

Se ele ao grego cantor, cantor latino
Muitas vezes seguiu, se imitou Tasso,
Nisso mesmo mostrou seu gosto e tino.

 

O dr. Carlos José Pinheiro, um dos mais distintos lentes de Medicina da Universidade, cuja memória ainda hoje é venerada por muitos que o conheceram, advertiu o autor (como este mesmo confessa no manuscrito que temos presente) de que Tasso anunciara o seu poema em 1575; e que Camões, tendo embarcado para a Índia em 1553, voltara a Lisboa com a sua epopeia em 1569; e que por isso era impossível que o épico português imitasse o italiano, aparecendo os Lusíadas seis anos, pelo menos, antes de anunciada a Jerusalem. Bingre aceitou a emenda cronológica, e emendou o seu terceto.  

 

F. P.

 

 

 

 N O T A S

 

(1) Segundo Aristóteles são depredados da classe dos poetas os que não incitam. A este rancho pertence o critico Macedo.

(2) O padre Macedo nunca foi conhecido na Arcádia por poeta, mas sim por um bom forjador de versos. A natureza não lhe conferiu aquele dom divino de entusiasmo ou furor poético, que (segundo Platão) põe em êxtase os verdadeiros poetas.

(3) Faltam no Oriente aqueles grandes arrebatamentos poéticos, aquela doçura poética, que sabe mover os afectos, e fazer-se senhora dos ânimos de quem lê, como pondera Horácio, Ep. de Art. Poet., v. 99:

Non satis est pulchra esse poemata; dulcia sunto;

Et, quocumque volent, animum auditoris agunto

o que tanto resplandece em Camões. 

(4) Quem quiser ter a pachorra de combinar o Oriente com os Lusíadas, conhecerá como este critico alucinado imitou servilmente a Camões, seguindo as suas pisadas, e sujando com lodosos pés о brilhante trilho do nosso poeta.

(5) Combine-se no canto 4.° dos Lusíadas a est. 71 com a est. 29 do canto 1.º do Oriente, e ver-se-á se a Ásia, que aparece em sonhos a El-rei D. Manuel, não é imitação, ainda que incomparavelmente menos brilhante) dos rios Indo e Ganges, que ao mesmo rei Camões faz aparecer em sonhos.

(6) Combine-se no mesmo canto 4.º dos Lusíadas a est. 94 соm a est. 12 do Oriente no canto 2.º

(7) Combine-se a est. 100 do 2.° canto dos Lusíadas com a est. 33 do canto 2.° do Oriente. 

(8) Combinem-se as est. 31 até 36 do canto 7.º do Oriente com as est. 39 e seguintes do canto 5.° dos Lusíadas.

(9) Combine-se o canto 5.° do Oriente com o canto 2." dos Lusíadas.

(10) Combine-se a est. 14 do canto 5.º do Oriente com a est. 01 do canto 2.º dos Lusíadas.

(11) Combine-se a est. 9 do canto 7.º do Oriente com a est. 49 do canto 3.° dos Lusíadas.

(12) Combine-se o canto 8.° do Oriente desde a est. 2 até 44 com os cantos 3.º e 4.º dos Lusíadas até á est. 66.

(13) O episódio de D. Inês de Castro, que em Camões é uma pincelada dum grande mestre, é em Macedo um borrão dum reles aprendiz.

(14) Combine-se a est. 55 do canto 4.º do Oriente com a. est. 23 do canto 2.° dos Lusíadas.

(15) Veja-se o que diz o A. do Oriente no Discurso Preliminar, pag. 48.

(16) Veja-se o dito Discurso Preliminar, pag. 98.

(17) Veja-se o dito Discurso Preliminar, pag. 97.

(18) É muito mais nobre aquele título, que se deduz do herói, que do lugar, porque este é o sujeito da acção, e aquele a causa eficiente- Vid. Freir. Poet, 1.3, cap. 5. Escalig. Poet. 1.3, cap. 97, na censura, que fez a Lucano na Pharsalia.

(19) A invocação, que é a 3.ª parte do poema épico na quantidade, faltou no Oriente. O seu autor se arremessou logo aos ares sem socorro divinal. Não se lembrou da elegantíssima invocação de Tasso à Musa celestial em uma belíssima oitava; e de Zarate no seu Poema Invención de la Cruz— invocando a mesma Cruz com as expressões mais vivas e delicadas.

(20) O nosso Macedo diz no seu Discurso Preliminar, pag. 99, que lutara sempre contra a natural esterilidade da monótona viagem do mar. Fizesse como fez Camões no canto 6.°, em que Veloso diverte os navegantes com o episodio dos 12 de Inglaterra, dando honra e fama а seus naturais. 

(21) Esta estátua do canto 3." do Oriente, que no pico da serra se patenteia ao Gama magicamente, tem laivos do aventura andante, pois não se decifra o modo ou razão por que ali foi posta.

(22) Este episódio do canto 4.º do Oriente foi tirado da tragédia francesa intitulada — a Viúva Malabar.

(23) Quão inverosímil não é a catástrofe deste negregado tríduo amante do mesmo 4.º canto do Oriente ! Quão arrastado não entra ali este episódio ! Quão eloquente não é o negro, que ainda resta vivo! Um boçal discorre assim? Enfim, esta brutal catástrofe não inspira ao leitor nem horror nem compaixão.

(24) Veja-se Fernão Mendes Pinto, cap. 76, pag. 99.

(25) O episódio de Lindara do canto 5.º do Oriente, sacrificada por um esposo amante ao fanatismo, é contrario à natureza; pois, se a lei fundamental daquele império proibia que reinassem mulheres, cedendo o rei de a pôr no trono, aplacava a fúria dos seus deuses, e escusava de matar a sua esposa tão amante.

(26) Não se vê em todo o Oriente um trilho diverso, novo, e não usado por outros épicos, à excepção destas negras pinceladas, ou borrões sem gosto.

(27) Seria fazer injúria á verdade negar ao padre Macedo uma grande erudição, e uns vastos conhecimentos literários: o que se Ihe nega é um paladar delicado em matéria de роesiа, pois Ihe falta a natureza, ainda que abunde em arte:

(28) As futuras proezas dos portugueses na Índia, vaticinadas por diferentes sujeitos, no Oriente são sempre as mesmas sem gosto repisadas.

(29)  Veja-se o canto 1.º do Oriente, est. 29 até 41.

(30) Veja-se o dito canto 1.º est. 42 até 61.

(31) Veja-se o canto 6.º est. 12 até 87, e canto 8.º est. 61 até 67.

(32) Veja-se o canto 10.º est. 72 até 91.

(33) Veja-se o canto 12.° est. 3 até 14.

(34) Veja-se o canto 12.º est. 17 até 109.

(35) Veja-se o canto 2.º est. 28 até 57.

(36) Veja-se o canto .3.º est. 57 até 60.

(37) Veja-se o canto 5.º est. 57 até 60, e canto 11.° est. 26 até 34, e as mais, que se não apontam.

(38) Veja-se o Discurso Preliminar, pag. 85. 

(39) Veja-se o dito Discurso Preliminar, pag. 87.

(40) A Escritura Sagrada do Velho, e Novo Testamento, que o Gama conta ao Samorim em 150 oitavas desde a est. 43 do canto 9.º até á est. 68 do canto 10.º, é um longo sermão, onde de propósito o nosso Macedo quis mais ostentar de pregador que de poeta.

(41) Se se fizer bem a conta no Oriente, as próprias narrações e digressões de Macedo, os sonhos, as profecias, e tudo o mais, em que ele se aparta da verdadeira acção do poema, tão somente fica sendo os pés da estátua de Nabuco. Olhem como caiu no mesmo que injustamente censura a Camões no Discurso Preliminar, pag. 88!

(42) Somem-se as oitavas das notadas profecias do Oriente, e ver-se-á a verdade.

(43) Somem-se as oitavas das notadas profecias do Oriente, e ver-se-á a verdade.

(44) Verso da est. 10 do 1.º canto do Oriente.

(45) Com o fim da visão e predição do S. Tomé ao Gama no porto de Calecut finda а acção do Oriente, e não se sabe se ele alevantou dali as âncoras.

(46) A quarta propriedade da epopeia é que seja de êxito feliz; nesta parte não seguiu o nosso censor a Camões; pois o êxito dos Lusíadas é a entrada de Vasco da Gama e seus companheiros pela barra de Lisboa, trazendo ao rei a alegre notícia de deixar descoberto um novo império ao reino de Portugal. Veja Freir. Poet. L. 3 pag. 174.

(47) Com efeito é necessária uma paciência extraordinária, para aturar de bom grado a filáucia e pedantismo de Macedo em abocanhar a merecida reputação de Camões, testificada geralmente pelo juízo dos sábios do todos os tempos e de todas as nações, e pelas inumeráveis edições de suas obras; abalançando-se a tratar o mesmo assunto tratado pelo corifeu dos poetas das Espanhas, proferindo que a sua época é a menos defeituosa possível, que compôs originalmente, que fechou todos os livros, etc., quando se nele se encontra alguma coisa boa, é o que furtou a Camões. É de notar que o que Macedo censura cm Camões é quase o mesmo que há muito censurou Voltaire, mil vezes refutado pelos críticos estrangeiros e nacionais; advertindo que ainda assim mesmo Voltaire pode ser desculpado, Macedo não o pode ser de maneira nenhuma. Voltaire ignorava a língua portuguesa, Macedo sabe muito bem a língua portuguesa: Voltaire serviu-se de uma tradução infiel, Macedo tinha á mão na língua materna as melhores edições e os melhores comentadores de Camões: Voltaire era um estrangeiro, Macedo é um nacional. Alem de impolítico mostrou nisto Macedo um grande descaramento.

(48) O padre José Agostinho de Macedo sempre foi um abocanhador do merecimento alheio, e quer ganhar nome, que passe à posteridade, de um satírico mordaz.

(49) Diz o nosso Macedo no seu Discurso Preliminar, pag. 98, que seguiu como Tasso a ordem natural da historia desde a saída do herói até á sua entrada no Tejo. Que mentira! Qual é a oitava ou verso do Oriente, que o dá entrado em Lisboa?

(50) Quem tiver alguma lição do poema de Camões, e ler o Oriente, achará que aquelas belezas dos Lusíadas, censuradas por Macedo como furto feito por Camões a muitos poetas, foram também furtadas por Macedo, que costuma primeiro sujar a água, que depois bebe: por isso bem Ihe compete o nosso rifão - quem o alheio veste, na praça o despe.

(51) О nosso censor no seu Discurso Preliminar, pag. 96, atreve-se a dizer que tudo o que nos Lusíadas é bom, é estranho, e o que é frouxo e fastidioso é próprio: apliquemos pois ao Oriente a mesma dose.

(52) Poema original do reverendo sr. José Agostinho de Macedo, em que magistralmente desenvolve todo o seu burrical estro, e que Ihe cingiu a fronte duma capela de cardos, que é o que os burros comem com fome.

 

(Transcrito de O Instituto, Coimbra, 1871, vol. XIV, pag. 210 a 215). Actualizou-se a grafia.

 

 

 

A MINHA BIOGRAFIA

 

Soneto

 

 

Na aldeia de Canelas fui gerado, 

E nela também tive o nascimento. 

Na Corte de Lisboa a meu contento 

Logo tempo vivi afortunado. 

 

Por génio natural às musas dado, 

Numa Arcádia d’um sábio ajuntamento 

Cultivei na poesia o meu talento, 

E por Cisne do Vouga fui cantado. 

 

A fortuna, que às cegas sempre gira,

Dando-me um encontrão d’aquela altura,

Nos vergéis me lançou da areenta Mira. 

 

Aqui sem fausto algum, e sem ventura,

Quarenta anos pulsei eu inda a lira;

E aqui me abriu a morte a sepultura.

 Francisco Joaquim Bingre           

Publicado no n.º XXII, de Janeiro-Junho de 1876, da revista OCIDENTE de Coimbra, a quem foi oferecido pelo neto do Autor, Bartolomeu Cardoso Bingre

 

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA sobre Francisco Joaquim Bingre

 

 

Obras de Francisco Joaquim Bingre, 6 vols., ed. lit. de  Vanda Anastácio, Lello & Irmão,  Porto 2000-2005

 

O moribundo cisne do Vouga, livro de poesias editado em 1850

Online: http://books.google.pt

 

Biografia por Inocêncio Francisco da Silva, in Archivo Pittoresco, IV, de 1861, pags. 129-131, 143-144 e 150-152

Online: http://books.google.pt

 

Wikipedia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Francisco_joaquim_bingre

 

 

Sobre José Agostinho de Macedo                              Outra página sobre Francisco J. Bingre