10-7-2000
 
 
ANTÓNIO GEDEÃO
 
(RÓMULO DE CARVALHO)
 
(1906 - 1997)
 

Outra poesia da minha juventude (canta MANUEL FREIRE)

 
 

Pedra Filosofal



     Eles não sabem que o sonho
     é uma constante da vida
     tão concreta e definida
     como outra coisa qualquer

     como esta pedra cinzenta
     em que me sento e descanso
     como este ribeiro manso
     em serenos sobressaltos

     como estes pinheiros altos
     que em verde e oiro se agitam
     como estas árvores que gritam
     em bebedeiras de azul

     eles não sabem que sonho
     é vinho, é espuma, é fermento
     bichinho alacre e sedento
     de focinho pontiagudo
     que fuça através de tudo
     em perpétuo movimento

     Eles não sabem que o sonho
     é tela é cor é pincel
     base, fuste, capitel
     que é retorta de alquimista

     mapa do mundo distante
     Rosa dos Ventos Infante
     caravela quinhentista
     que é cabo da Boa-Esperança

     Ouro, canela, marfim
     florete de espadachim
     bastidor, passo de dança
     Columbina e Arlequim

     passarola voadora
     pára-raios, locomotiva
     barco de proa festiva
     alto-forno, geradora

     cisão do átomo, radar
     ultra-som, televisão
     desembarque em foguetão
     na superfície lunar

     Eles não sabem nem sonham
     que o sonho comanda a vida
     que sempre que o homem sonha
     o mundo pula e avança
     como bola colorida
     entre as mãos duma criança.


Lágrima de preta 

 

Encontrei uma preta
que estava a chorar
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente :
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume :

nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

 

António Gedeão 

 
 
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