30-1-2001

 

 

 

ALEXANDRE O'NEILL

 

Mais poemas:

Meditação na pastelaria

Pulga

Que vergonha, rapazes!

De "A cordial botelha"

Pois

 

 

MEDITAÇÃO NA PASTELARIA

 

Por favor, Madame, tire as patas,

Por favor, as patas do seu cão

De cima da mesa, que a gerência

Agradece.

 

Nunca se sabe quando começa a insolência!

Que tempo este, meu Deus, uma senhora

Está sempre em perigo e o perigo

Em cada rua, em cada olhar,

Em cada sorriso ou gesto

De boa-educação!

 

A inspecção irónica das pernas,

Eis o que os homens sabem oferecer-nos,

Inspecção demorada e ascendente,

Acompanhada de assobios

E de sorrisos que se abrem e se fecham

Procurando uma fresta, uma fraqueza

Qualquer da nossa parte...

 

Mas uma senhora é uma senhora.

Só vê a malícia quem a tem.

Uma senhora passa

E ladrar é o seu dever – se tanto for preciso!

 

                                    *

 

O pó de arroz:

Horrível!

O bâton:

Igual!

 

O amor de Raul é já uma saudade,

Foi sempre uma saudade...

(O escritório

Toma-lhe o tempo todo?

Desconfio que não...)

 

Filhos tivemos um:

Desapareceu...

E já nem sei chorar!

 

                                    *

 

Chorar...

Como eu queria poder chorar!

 

Chorar encostada a uma saudade

Bem maior do que eu,

Que não fosse esta tristeza

Absurda de cada dia:

Unha

Quebrada de melancolia...

 

Perdi tudo, quase tudo...

 

Hoje,

Resta-me a devoção

E este pequeno inteligente cão.

 

Por favor, Madame, tire as patas,

Por favor, as patas do seu cão

De cima da mesa, que a gerência

Agradece.

 

            (No Reino da Dinamarca - 1958)

 

 

 

   

 PULGA

 

Pula pula

                        g

Como o g da pul a.

 

           (Feira Cabisbaixa - 1965)

 

 

QUE VERGONHA, RAPAZES!

 

 

Que vergonha, rapazes! Nós práqui,

caídos na cerveja ou no uísque,

a enrolar a conversa no “diz que”

e a desnalgar a fêmea (“Vist’? Viii!”)

 

Que miséria, meus filhos! Tão sem jeito

é esta videirunha à portuguesa,

que às vezes me sorgo no meu leito

e vejo entrar quarta invasão francesa.

 

Desejo recalcado, com certeza...

Mas logo desço à rua, encontro o Roque

(“O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!”)

e desabafo: - Ó Roque, com franqueza:

 

Você nunca quis ver outros países?

-         Bem queria, Snr. O’Neill! E... as varizes?

 

(De Ombro na Ombreira - 1969)

 

 

 

 

   

DE “A CORDIAL BOTELHA”

 

                        1

D. Florinda, rotunda,

de seio farto, infarto certo,

lugar-comum e tradição,

desoprime-se comigo

e ralha-me em tom amigo:

 

-         Oh! Que carago!

Olha que o Porto é uma nação!

 

                  2

 

-         Já agora logo amanhã...

Prontificam-se os algarvios

não-te-rales e papa figos,

quando não querem (que tios!)

que lhes encanem a perninha à rã.

 

                  3

 

 

Prontifica-se

a fazer,

nas fica-se

no dizer.

 

Pronto! Fica-se.

Que se lhe

há-de

fazer?

 

                  4

 

Tome cuidado, senão

fazem-no Dr. Do pé prà mão.

Mas se Dr. Não diz que é

Fazem-no cão da mão prò pé.

 

            (De Ombro na Ombreira-1969)

 

 

 

POIS

 

O respeitoso membro de azevedo e silva

nunca perpenetrou nas intenções de elisa

que eram as melhores. Assim tudo ficou

em balbúrdias de língua cabriolas de mão.

 

Assim tudo ficou até que não.

 

Azevedo e silva ao volante do mini

vê a elisa a ultrapassá-lo alguns anos depois

e pensa pensa com os seus travões

Ah cabra eram tão puras as minhas intenções

 

E a elisa passa rindo dentadura aos clarões.

 

 

            (Entre a cortina e a vidraça - 1972)

 

 

           

 

                Textos extraídos de Alexandre O'Neill, Poesias Completas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000

 

              

 

Pode encontrar uma pequena biografia do poeta, aqui.

  

Outras páginas com poemas de Alexandre O'Neill, aqui e aqui.