20-3-2001

 

ADÍLIA LOPES

 

 

 

Meteorológica

para o José Bernardino

Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ter

Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas

Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)

A vida
é livro
e o livro
não é livre

Choro
chove
mas isto é
Verlaine

Ou:
um dia
tão bonito
e eu
não fornico

A solidão
de Adão
antes da criação
de Eva
devia ser
terrível
mas a minha
é bem pior
os homens
que escreveram
o Génesis
não pensaram
que Adão
em vez de saudar
Eva
com um grito de júbilo
a mandasse embora
com sete pedras na mão
mas eu acho
que foi
o que me aconteceu
temendo isso
Deus
não me deu
o papel de Eva
nem o de Maria
porque também
S. José
me tinha corrido
a pontapé

 

 
 

Hans Magnus Enzensberger

Hans Magnus Enzensberger
na Casa Pessoa
mostrou-se
muito pessimista
em relação
ao mundo
mas muito contente
consigo mesmo

 

 

 
Adília Lopes
 

Bocados

I
Deus quer
a mulher também
Adão não

Quero
um homem
um homem
que goste de mim
e de que eu goste
(não quero
um velho)

Versos rebuscados
como rebuçados

II
Beijo-te
e vejo-te
e no beijo
estamos

Atam-nos
e matam-nos


III
A metáfora
é a errata

IV
Com o amor
recusado
é preciso
ter cuidado

Sou a tua
namorada
não preciso
de mais nada

V
Rico entrar
no Paraíso!
diz o preto

 

 

 

 

 

Memórias das Infâncias

 

 

Gostávamos muito de doce de framboesa

e deram-nos um prato com mais doce de framboesa

do que era costume

mas

a nossa criada a nossa tia-avó no doce de framboesa

para nosso bem

porque estávamos doentes

esconderam colheres do remédio

que sabia mal

o doce de framboesa não sabia à mesma coisa

e tinha fiapos brancos

isso aconteceu-nos uma vez e chegou

nunca mais demos pulos por ir haver

doce de framboesa à sobremesa

nunca mais demos pulos nenhuns

não podemos dizer

como o remédio da nossa infância sabia mal !

como era doce o doce de framboesa da nossa infância !

ao descobrir a mistura

do doce de framboesa com o remédio

ficámos calados

depois ouvimos falar da entropia

aprendemos que não se separa de graça

o doce de framboesa do remédio misturados

é assim nos livros

é assim nas infâncias

e os livros são como as infâncias

que são como as pombinhas da Catrina

uma é minha

outra é tua

outra é de outra pessoa

 

In – Adília Lopes –OBRA – O Decote da Dama de Espadas, pag. 107, Ed. Mariposa Azual, Lisboa 2001

 

 

 

 

 

 

A Bela Acordada

 

Era uma vez uma mulher que tão depressa era feia era bonita, as pessoas diziam-lhe:

- Eu amo-te.

E iam com ela para a cama e para a mesa.

Quando era feia, as mesmas pessoas diziam-lhe:

- Não gosto de ti.

E atiravam-lhe com caroços de azeitona à cabeça.

A mulher pediu a Deus:

- Faz-me bonita ou feia de uma vez por todas e para

sempre.

Então Deus fê-la feia.

A mulher chorou muito porque estava sempre a apanhar

com caroços de azeitona e a ouvir coisas feias. Só os animais

gostavam sempre dela, tanto quando era bonita como quando

era feia como agora que era sempre feia. Mas o amor dos animais

não lhe chegava. Por isso deitou-se a um poço. No poço,

estava um peixe que comeu a mulher de um trago só, sem a

mastigar.

Logo a seguir, passou pelo poço o criado do rei, que

pescou o peixe.

Na cozinha do palácio, as criadas, a arranjarem o peixe,

descobriram a mulher dentro do peixe. Como o peixe comeu a

mulher mal a mulher se matou e o criado pescou o peixe mal o

peixe comeu a mulher e as criadas abriram o peixe mal o peixe

foi pescado pelo criado, a mulher não morreu e o peixe

morreu.

As criadas e o rei eram muito bonitos. E a mulher ali era

tão feia que não era feia. Por isso, quando as criadas foram

chamar o rei e o rei entrou na cozinha e viu a mulher, o rei

apaixonou-se pela mulher.

- Será uma sereia ? – perguntaram em coro as criadas ao

rei.

- Não, não é uma sereia porque tem duas pernas, muito

tortas, uma mais curta do que a outra – respondeu o rei às

criadas.

E o rei convidou a mulher para jantar.

Ao jantar, o rei e a mulher comeram o peixe. O rei disse à

mulher quando as criadas se foram embora:

- Eu amo-te.

Quando o rei disse isto, sorriu à mulher e atirou-lhe com

uma azeitona inteira à cabeça. A mulher apanhou a azeitona e

comeu-a. Mas, antes de comer a azeitona, a mulher disse ao rei:

- Eu amo-te.

Depois comeu a azeitona. E casaram-se logo a seguir no

tapete de Arraiolos da casa de jantar.

 

 

In Adília Lopes – OBRA – A Bela Acordada, pag 300, Ed. Mariposa Azul, Lisboa 2001 

               

                    Pode ler as Crónicas da Vaca Fria, publicadas pela autora no PÚBLICO aqui.

                    ... e as Cartas do meu Moinho, também do PÚBLICO, aqui

Um texto do Prof. Fernando Guerreiro, aqui

                   Setembro de 2002 - A  & etc editou mais um livro de poemas de Adília

                                                                             Lopes, com o título "A mulher-a-dias", 83 pág.

 

AGOSTO DE 2003. Acaba de ser publicado mais um livro de poemas com o título “César a César”. É uma edição fraquinha, em papel fraquinho, com 91 páginas e 52 poem(inh)as, que se lêem todos no Metro da livraria até casa. Mas o livrinho custa ... 12,57 euros. Alguém se anda a governar: espero que seja a Adília Lopes.

Pelo sim, pelo não, aqui ficam os dois poem(inh)as, de que gostei mais.

 

Novembro de 2004. Publicado outro livro de poemas com o título "Poemas Novos", 79 pág., edição da & etc.,

ISBN  972-8538-72-X. Reproduzi dois poemas, aqui.

 

17 de Junho de 2005 - Uma longa entrevista no DNa, aqui

 

Fevereiro de 2006 - "Le Vitrail, la nuit" - "A Árvore Cortada", 88 págs. & etc, ISBN 972-8539-83-5. As críticas e mais dois poemas aqui.

Novembro de 2007 - Caderno, 29 págs. & etc, ISBN 978-972-8539-99-3. Críticas, aqui.

 

Outubro de 2010 - "Apanhar ar",  18 pequenos poemas e desenhos da autora, em edição numerada e assinada de 400 ex., Assírio & Alvim, ISBN 978-972-37-1531-6, Críticas, aqui.

 

Fevereiro de 2015 - "Manhã", 126 págs., Assírio & Alvim, ISBN 978-972-57-1809-6. Críticas aqui.

 

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 Adília Show

                                    Clara Ferreira Alves

 

  Adília Lopes tem coisas para ler, e merece ser lida e entendida como tal.
 
   

 

Não conheço Adília Lopes em pessoa, não tenho por ela simpatia ou antipatia. Um poeta mede-se pelos versos que faz e pelo que escreve, e gosto de algumas coisas que Adília Lopes escreve, da sua sinceridade aparente que esconde um sentido profundo das coisas. Adília Lopes tem coisas para ler, e merece ser lida e entendida como tal. Mas, ultimamente, Adília Lopes transcendeu a sua condição de poeta obscuro e aparece em todas as partes. Adília Lopes foi absorvida pelas televisões, a RTP, no Adília Lopes Recomenda, a SIC, nas Crónicas Marcianas e no Herman. Nos dois últimos casos, o que querem eles de Adília Lopes? A sua escrita, a sua qualidade humana, a escritora que ela é? Acho que não. Querem explorar a aparente candura dela, que a leva a dizer com um ar muito sereno o que o senso comum tem o pudor de esconder ou inventar, um relato de opiniões de pechisbeque.
Os escritores não são muito considerados pelas televisões. São tratados em pé de página e mantidos à distância de um braço, como se fossem portadores do vírus do intelectual ou da lepra dos incompreendidos. E eis que aparece uma mulher, não muito bonita mas muito inteligente, que não hesita em confessar que não é muito bonita mas é inteligente suficiente para perceber que uma mulher tem, obrigatoriamente, de ser bonita. A escritora destapa o manto diáfano da fantasia e desnuda-se em público.
As televisões tomam isto por deboche e provocação e aproveitam-se. Se for uma mulher tanto melhor, rende mais. O programa do João Baião goza com ela, deliciado. Está aberto o «freak show», senhores espectadores. E o nome é sublime, Adília Lopes, nome que a falsa Adília inventou, em intuição prévia desta personagem de espectáculo. Cada um dá-se em espectáculo como quer e pode mas, a poesia de Adília é melhor do que isto. Ela, se calhar, também
.

 

 

Links:

Apologia de Adília Lopes,
Quando se Anuncia a Publicação da sua Obra Completa

Jorge Esteves Cunha

Adília Lopes espanca Florbela Espanca 
Osvaldo Manuel Silvestre

 

Rosa Maria Martelo, Recensão crítica a 'Obra', de Adília Lopes", in: Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 157/158, Jul. 2000, p. 398-401.
 

Rosa Maria Martelo, Adília Lopes – ironista, in SCRIPTA, Revista do Programa de Pós-graduação em Letras e do Cespuc, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, ISSN 1516-4039, Vol. 8, n.º 15, 2.º semestre de 2004, pags. 106 -116

 

Sofia Maria de Sousa Silva,  Reparar brechas: a  relação entre as artes poéticas de Sophia de Mello Breyner Andresen e Adília Lopes e a tradição moderna. Tese de doutorado apresentada à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - Março de 2007.

 

 

                                           

     PÚBLICO, MIL FOLHAS, 10 de Fevereiro de 2001

 

Paula Rego sobre Adília Lopes

“No grotesco há muita ternura”

 

“Só no verão passado é que li a poesia da Adília Lopes, o editor enviou-me alguns livros para que eu ilustrasse a ‘Obra’. Comecei a ler e fiquei pasmada por haver alguém que escrevia aquelas coisas. Era inesperado. Passei a andar com os livros dentro da mala, não calculam o prazer intenso que me dava ler aquilo. De tanto reler já quase sabia os poemas de cor, e mesmo assim eram sempre uma surpresa. Quando fiz a ilustração das ‘Nursery Rhymes’ costumava de ler à noite e, de manhã, vinham-me as imagens, mas estes poemas fizeram-me logo lembrar a minha juventude, com as criadas, as bonecas, as mães ultraprotectoras. Lembro aquele poema em que a menina vai passear com a mãe e vê um cão e uma cadela a fazerem amor e a mãe não deixa a menina ver. Tudo o que queria estava nos poemas e acabei por fazer vários desenhos para escolher apenas três. A imagem da capa, reprodução de uma grande litografia a cores, ilustra as meninas a brincar às missas, a menina a brincar com a Joaninha ladra do moinho (ver Sete rios entrecampos’. E dá uma hóstia à outra. É sempre a minha modelo, a Lila, claro. Gostei muito do poema do vestido cor de salmão feito em pedaços que serve para vestir uma boneca e depois outra mais pequena que cai a um poço [ver ‘O decote da rainha de espadas’ ]. Aos poemas de “A continuação do fim do mundo” fui buscar a imagem da contracapa, é a avó a beijar a menina na boca, no sofá do atelier [e que é o mesmo onde se senta Dionísia, a tecedeira de anjos, em ‘O Crime do Padre Amaro’].. Adília Lopes é de um grande romantismo - por exemplo, diz: ‘Ah, quem me dera um vestido que me queimasse’ - e ao mesmo tempo de um grotesco e de um cómico transbordantes. Para mim, o grotesco é belo, o grotesco é de uma grande ternura. E ela está cheia de ternura e de compaixão, mas não é lamechas. A maldade é reconhecida mas não é praticada, sem ser maledicente reconhece o que é importante no mal. A maldade é o outro lado das coisas boas. Dizer que é uma tímida que se desenrasca é uma boa definição para a Adilia Lopes. Tal como Mário Cesariny, ela é cândida e culta, leu tudo, e ao mesmo tempo tem inspiração. Tenho muito trabalho e estive a ler outros livros, mas não me consigo libertar da poesia da Adília Lopes. Gostei muito”.

  

PÚBLICO, MIL FOLHAS, 10 de Fevereiro de 2001

 

A Obra de Adília Lopes, desde 1985 até ao inédito O Regresso de Chamilly, é publicada num só livro, ilustrado e aplaudido por Paula Rego.

 

O salto da cobra

SUSANA NEVES

 

Para ser escritor não é preciso viver uma vida aventurosa e ter muitas viagens feitas. Assim como uma lua de mel inesquecível não passa necessariamente por um quarto de hotel, cinco estrelas, com vista sobre uma paisagem longínqua. “Um dia estava no café e ouvi dois rapazes a conversar, um deles, casado há pouco tempo, dizia que a lua de mel tinha de ser no Egipto ou no México. Deu-me vontade de rir porque acho possível passar uma lua de mel inesquecível na Praça da Figueira’’, afirma Adília Lopes, na realidade Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira, 41 anos, fazendo justiça ao tom humorístico que tanto caracteriza a sua poesia e contos.

Publicada dispersamente em quinze livros quase todos esgotados - excepção para uma meia dúzia, entre os quais, “O decote da dama de espadas (romances)”, IN-CM, Gota de Água, 1988, “O poeta de Pondichéry”, Angelus Novus, 1998, “Sete rios entrecampos”, & etc, 1999, e Florbela Espanca espanca”, Black Sun Editores, 1999 - a “Obra” de Adília é agora finalmente reunida num grosso volume (a que se junta o inédito “O regresso de Chamilly”). A edição é da Mariposa Azual, as ilustrações de Paula Rego.

Num país onde o humor ainda se confunde com a gargalhada fácil - já no princípio do século XX, o mestre Rafael Bordalo Pinheiro se queixava do mesmo, murchando-lhe o ímpeto criativo por ver a piada obscena destronar a inteligência criativa - a escrita de Adília Lopes, sempre determinada e desenvolta na relação de ideias e conceitos, é no mínimo um choque, um achaque de que se fica alegremente a padecer depois da leitura de umas poucas páginas. “Depois do holocausto, a barata Eva e a barata Adão comerão da maçã. Mas isso não será pecado. E uma humanidade de baratas viverá feliz para sempre num Paraíso sujo de restos de pessoas que não será sujo para ninguém.” (’Irmã barata, irmã batata”). Especialista na arte de desconcertar, não só porque segue à letra a máxima cartesiana de acarinhar em si o que os outros poderão achar ridículo mas também por irreverência de “lesma” genial reprimida - a mãe era tão protectora que arrancava o cochicho aos bonecos de chiar com medo de que os engolisse - Adília Lopes é ainda possuidora de um olhar científico, atento, analítico, informado, capaz de se imiscuir em entranhas e vísceras para delas retirar um precioso sumo, nosso mas sempre rejeitado.

“Os passarinhos também debicaram os mamilos com leite da princesa sem nunca a magoarem. E o chinês bebeu uma gota de leite da maminha da princesa. Depois a princesa e o chinês casaram-se e tiveram muitos filhos e muitas filhas, muitos animais e muitas plantas ” (“A bela acordada” ).

Inscrevendo-se na linhagem de escritoras como Emily Dickinson e as irmãs Brontë, mulheres cuja vivência circunscrita ao universo doméstico não foi um obstáculo ao desenvolvimento de um imaginário romanesco que ficou para a História, Adília Lopes faz do seu quotidiano um autêntico campo de recolha de “matéria”, a subverter e integrar na poesia. Malabarista como Mário Cesaniny, sarcástica à laia de Bocage, vicentina de saias, a poetisa consegue ser romântica e perversa, angustiada e prazenteira no gozo que tudo lhe proporciona.

A infância, reino de tias e avós, meninas exemplares e desastres de Sofia, da relida Condessa de Ségur, é um património constantemente revisitado mais pela maldade requintada do que pelo encanto tranquilizador. “Gostava muito dos livros antigos da minha mãe, professora de Botânica na Faculdade de Ciências, gostava da trilogia de As Meninas Exemplares’ e de “Os Dois Patetas”, da Condessa de Ségur. Era muito mimada e muitas vezes estava doente, pedia á minha mãe e à avó para me lerem alto essas histórias. Havia uma história em que a um menino se tiravam os calções para o vergastar, gostava de a ler às escondidas. O filme preferido era “Música no Coração”, cheguei a querer ser realizadora, mas dos contos de fadas da Condessa de Ségur nunca gostei, eram muito cruéis”.

Herdeira de um património emocional ambíguo, “as criadas eram más, maltratavam os animais, que para mim sempre foram raízes que me prendem à vida”, começamos a imaginá-la embalada em lengalengas e ditos populares, confluindo num oceano onde também desaguava uma atmosfera piedosa de terços e crucifixos.

Depois da gata lamber os pés à soror Mariana, o marquês Chamilly acaba por aparecer e

 

“Portanto Milly chéri

és muito bem vindo

a mulher (eu)

deixa

pai e mãe

e apega-se

ao homem (tu)

e são ambos

uma carne”.

 

A frequência do curso de Física - chegou ao terceiro ano com média de 16 – ensinou-lhe a ginasticar a mente, a perceber que afinal o vazio é só um postulado teórico, e a entropia um conceito a levar a sério. De pulgas percebe pouco, mas lembra-se de a avó dizer quando apanhava uma: “Já ganhei o dia”. A mesma avô dizia-lhe também

“Da minha janela à tua

vai o salto de uma cobra.”

Adília Lopes, que se define como ‘tímida desenrascada” ou “freira poetisa barroca”, conclui que o importante é tentar ver esse magnífico salto de cobra. A sua poesia quixotesca esgrime no papel o tal ajuste de cantos a que aspira a mais inspirada das artes e entoa o fascinante sibilar da cascavel.

 

Obra:

AUTOR: Adília Lopes

EDITOR: Mariposa Azual

512 páginas

 

A morte do artista

 

A «Obra» de Adília Lopes propõe-nos uma secularização total da poesia

 

OBRA e IRMÃ BARATA, IRMÃ BATATA

 

de Adília Lopes  

 

(Mariposa Azual, 2000, com três gravuras originais de Paula Rego e posfácios de Elfriede Engelmayer e de Américo António Lindeza Diogo, 512 págs., 5000$00, 25,94 euros; Angelus Novus, 2000, posfácio de Manuel Sumares, 40 págs., 1700$00, 8,48 euros)

 

 

António Guerreiro
 

 
 
Adília Lopes, poetisa de «autobiografias sumárias»
 

Ao longo de 15 anos, Adília Lopes foi-se «intrometendo» na cena da poesia portuguesa, por via de uns objectos estranhos, sob a forma de pequenos livros de poesia, mais difíceis de dissolver no contexto do que quaisquer outros que foram aparecendo entretanto: eles pareciam vir de um lugar que não reconhecia os canónicos protocolos de certificação literária. É justo, por isso, falar numa intromissão, cujos efeitos foram sentidos na recepção crítica dos seus livros: ora situando-os na margem do sistema (sob o impulso da rejeição ou da indulgência), ora colocando-os no centro, mas dotando-os de um perverso mecanismo de implosão ou de arremesso. De uma maneira ou de outra, estaríamos sempre próximos a uma «poesia de revolta», se aceitarmos que esta expressão de Lautréamont já não pode significar hoje a mesma coisa.

No momento em que aparece Obra, reunindo 15 títulos (ela inclui um livro inédito, O Regresso de Chamilly, e também um outro livro editado quase simultaneamente pela Angelus Novus, Irmã Barata, Irmã Batata), começa a ser claro que Adília Lopes se deslocou (graças, sobretudo, aos esforços de «canonização» por parte de alguns críticos vindos do lado da universidade, nomeadamente Américo A. Lindeza Diogo e Osvaldo Manuel Silvestre) do lugar de «poetisa pop», que ela reclama num poema de O Peixe na Água (pág. 205), para um estatuto em que é posta a dialogar com os seus contemporâneos.

Este processo conta com a preciosa ajuda desta Obra: porque ela permite perceber (falando em nome pessoal: permitiu-me perceber) que a poesia de Adília Lopes não pode ser lida pelo lado da negatividade ou da atitude reactiva que faria dela um mero dispositivo provocatório de deflação e dessublimação do poético. Porque se trata de uma poesia que não rejeita nada, antes aceita tudo, tendo porém escolhido frequentar regiões infrapoéticas (porque continua a haver a ideia de que as há, de que a «secularização» da poesia deve ter os seus limites). E é isso que a desloca frequentemente para uma zona de risco, permitindo perigosas caricaturas (que a autora tem propiciado, devemos reconhecer, nas suas exposições televisivas).

Repare-se nesta coisa importante: a tutelar a Obra está uma epígrafe retirada de um texto de Sophia de Mello Breyner (e também outra, emprestada por Agustina Bessa-Luís). Trata-se de um tributo prestado a uma ordem que está nos antípodas: a ordem que restaura, sob certas condições, a antiga relação entre a beleza e a verdade. Parece paradoxal: mas este é o paradoxo de quem activa uma inocência produtiva, que não pode ser confundida com a provocação «naïve» ou gratuita (a fronteira que as separa pode afigurar-se ténue, mas uma vez descoberta torna-se intransponível).

A poesia de Adília Lopes deixou para trás, a uma distância que a torna irrecuperável, qualquer referência às musas e à beleza. Daí, o facto de se tratar de «um jogo bastante perigoso», como era anunciado logo no título do primeiro livro, de 1985, onde podíamos ler este poema: «Os poemas que escrevo/ são moinhos/ que andam ao contrário/ as águas que moem/ os moinhos/ que andam ao contrário/ são as águas passadas» (pág. 31). É verdade que este poema desenvolve muito mais uma lógica do que uma poética. Mas isso é o que acontece em toda a poesia de Adília Lopes, e é precisamente aí que se torna bem visível a perigosidade do jogo: o que está em causa não é, de modo nenhum, a produção de uma obra bela (digamos, uma experiência «estética», naquilo que ela tem de edificante futilidade), mas a vida ou a morte do autor. Sem que isso se traduza em «pathos» porque, nesta poesia, só há trágico na medida em que ele coincide com o ridículo. E esta coincidência é uma espécie de lei interna, altamente poderosa, que, ao mesmo tempo que retira sublimidade a todas as coisas, lhes concede o poder inquietante de fazer com que elas não coincidam consigo próprias, afectadas que são por uma dilaceração crítica: «Os gostos e os desgostos/ levam ao poema/ como podem levar/ ao precipício/ o poema fala do precipício/ lá haverá choro/ e ranger de dentes/ e não haverá Kleenex/ nem o Dr. Abílio Loff/ o meu querido dentista/ o poema fala do precipício/ evitado a tempo/ o mau poema não mata/ (mais vale burro vivo/ que sábio morto)» (pág. 417).

Esta é a regra poética mínima de Adília Lopes: aquela que consiste em apropriar-se de todos os discursos, o popular e o erudito, e de todas as matérias, as que têm dignidade e as que a não têm, destruindo assim as hierarquias mais persistentes, inclusivamente aquela que é responsável pelas definições do bom-gosto e do mau-gosto. Ela desenvolve-se de costas viradas para o leitor e coloca no centro o autor, não sob a forma de um «eu» como centro de uma construção ou de uma expressão, mas de um «eu» que põe em acção uma lógica implacável de que também ele não se salva. Por isso, quando se trata de fazer uma «Autobiografia sumária de Adília Lopes», escreve-se pura e simplesmente isto: «Os meus gatos/ gostam de brincar/ com as minhas baratas» (pág. 80). Daí a estranha impressão de que a poesia de Adília Lopes é autobiográfica quase em primeiro grau, mas dela não conseguimos deduzir uma vida enquanto conjunto de circunstâncias pessoais. Digamos que a brutalidade da «grafia» se sobrepõe à verosimilhança do «bio». Por isso, «o que eu escrevo não se diz» (pág. 43): o que se escreve e não pode (ou não deve) ser dito é o que está para além de toda a garantia «ética» ou «poética». É uma forma de enlouquecimento do discurso, não pela quebra das conexões lógicas, mas exactamente pela razão inversa: porque não há senão a lógica e nada resiste aos seus poderes de aniquilação. É este mecanismo, e não a sátira, a ironia e o humor, em sentido tradicional, que caracteriza a poesia de Adília Lopes. O seu efeito corrosivo não é muito diferente, mas a redução niilista a uma «lógica da batata» e a evocação da «literatura inclusa» têm o poder de nos persuadir, por momentos, de que nada, na literatura, é muito grave e pouco, na vida, é alegre, mas não nos devemos preocupar com isso: «Clarice Lispector,/ a senhora não devia/ ter-se esquecido/ de dar de comer aos peixes/ andar entretida/ a escrever um texto/ não é desculpa/ entre um peixe vivo/ e um texto/ escolhe-se sempre o peixe/ vão-se os textos/ fiquem os peixes/ como disse Santo António/ aos textos» (pág. 308).

Do "Expresso", de 10-3-2001

 

 

Foi em 1985, com Um Jogo Bastante Perigoso, que Adília Lopes (n. 1960) se apresentou à tribo. Treze livros mais tarde, a autora suscita no meio literário a “reacção admirativa de quem contempla um unicorne em pleno Rossio (ou melhor, no Campo Grande): se a crítica não sabe o que dizer de quem tão ostensivamente a põe em causa, a academia, manifestamente, diverte-se, assim disfarçando a sua incomodidade perante um fenómeno que, no fundo, não consegue entender” – lembra Osvaldo Manuel Silvestre no desenvolto posfácio de Florbela Espanca espanca. De facto, a academia, ou quem por ela mais frequentemente fala, com o descobrir um génio em cada temporada, aposta quase sempre na previsibilidade dos subprodutos. E, contra toda a evidência, previsibilidade é uma das coisas que Adília não garante:

 

“Eu quero foder foder

achadamente

se esta revolução

não me deixa

foder

até morrer

é porque

não é revolução

nenhuma

[…]

a relação entre

as pessoas

deve ser uma troca

hoje é uma relação

de poder

(mesmo no foder)

a ceifeira ceifa

contente

[…]

a gestora avalia

a empresa

pela casa de banho

[…]

o choro da bebé

não impede a mãe

de se vir

a galinha brinca

com a raposa

eu tenho o direito

de estar triste” (pág. 7)

 

Epítome do Kitsch- “em Adília o Kitsch é interiorizado homeopaticamente enquanto dispositivo wahroliano de evidenciação das falsas promessas da linguagem e da arte”, (pág. 40) – e da iconoclastia, a autora de O Poeta de Pondichéry (1986) e de Clube da Poetisa Morta (1997) subverte a apagada e vil melancolia em que parecem ter mergulhado alguns dos seus pares:

 

“O morto do horto

é o porco

da aldeia

o moço

espetou-lhe

a faca

no cachaço

a Maria Arminda

felicíssima

mexe o sangue

no balde

com a pá

a mãe catequista

fugiu para os montes

com o avental

pela cabeça

para não ouvir

os gritos

tudo se passa

na casota

de madeira e de palha

rente ao poço

rente ao osso.” (pág. 32-33)

 

Regresso ao real? Querem mais? Wittgenstein, citado por Silvestre (pág. 38), resume bem a situação: “Language is not contiguous to anything else”. A obra de Adília reitera-o em cada novo livro.

 

Eduarto Pitta, A Vocação do Canto         

 

em O som & a sombra, Revista LER n.º 49, último trimestre de 2000

 

 

EXPRESSO, Actual n.º 1932, de 7 de Novembro de 2009

 

Duas obras poéticas reunidas, dois percursos muito diferentes no panorama da poesia portuguesa contemporânea

 

Texto de António Guerreiro

 

DOBRA – Poesia reunida

Adília Lopes

Assírio & Alvim, 2009

688 pags.

 

A LUZ FRATERNA – Poesia reunida (1965 – 2009)

António Osório

Assírio & Alvim, 2009

Pref. De Eugénio Lisboa

656 pags.

  

Para evitar equívocos, um aviso prévio: apenas a circunstância de terem saído ao mesmo tempo a poesia reunida de Adília Lopes e a de António Osório justifica a convivência a que os dois poetas são aqui pragmaticamente submetidos. E se, já quase no final do livro de Adília Lopes, numa secção de poemas inéditos que a autora diz terem ficado, “por acaso, fora dos livros que publiquei”, é citada uma passagem de um texto em prosa de um livro de António Osório, é porque se interpôs a coincidência de um nome próprio: o nome de Adília, “colega simpática” mas “aprendiz da maldade”, que comparece num texto onde o poeta evoca o dia em que fez o exame da quarta classe. Adília Lopes leu, portanto, António Osório e ‘desviou’ um excerto de um dos seus textos, fazendo-se passar por alguém que tem o mesmo nome. Isto não tem nada de anedótico e vale como um típico jogo da poesia de Adília Lopes: aquele que consiste em criar identidades, representações, figuras que são a cifra de um Eu que constrói uma sumptuosa comédia autobiográfica. Numa “autobiografia sumária” da poetisa enquanto comediante, podemos ler estes versos desarmantes e deceptivos: “Os meus gatos/ gostam de brincar/ com as minhas baratas”. Este jogo da exibição e da ocultação é um jogo com as palavras, com a lógica do sentido. Dir-se-ia que na poesia de Adília Lopes tudo se passa à superfície, mas uma superfície de onde se avista o abismo. Daí a pertinência analítica do título do primeiro livro, de 1985. “Um Jogo Bastante Perigoso”. É desse livro esta espécie de arte poética que introduz uma metáfora para imediatamente a seguir a literalizar, suspendendo a sua dimensão teorética e inclinando o poema para o lado da auto-irrisão: “Os poemas que escrevo/ são moinhos/ que andam ao contrário/ as águas que moem/ os moinhos/ que andam ao contrário/ são as águas passadas”. Sabemos como esta dimensão de comédia determinou uma recepção alargada, e por vezes equivocada, da poesia de Adília Lopes. Foram desvios passageiros e sem importância, como podemos perceber, quando lemos os vinte livros, mais o conjunto de poemas inéditos, reunidos neste volume. A poesia de Adília Lopes é uma estação fundamental e singular no percurso da poesia portuguesa desde os anos 80. O seu grande triunfo consistiu em renunciar completamente ao lirismo e às suas tonalidades afectivas, mantendo uma densidade que advém da exploração linguística, em todos os níveis. Alguns momentos mais frágeis — que os há, sobretudo em dois ou três livros mais próximos do final — são aqueles em que os dispositivos lúdicos e os processos formais absorvem tudo.

António Osório situa-se num lado oposto. Com os seus primeiros livros, o primeiro dos quais é “A Raiz Afectuosa” (1972) , traçou um caminho importante no panorama da poesia portuguesa, pelo modo como retomava uma palavra poética com origem na observação do criatural, do ser vivo (animal e vegetal), e que era ao mesmo tempo conhecimento e forma, meditação e invenção. Entregando-se à celebração da integridade e da beleza, a poesia de António Osório apareceu liberta da crispação moderna e penetrava no silêncio das coisas da natureza com a sobriedade e a quietude do ethos clássico. E apropriava-se, à maneira romântica, da prosódia da natureza. A celebração como fim último da palavra poética é um tema recorrente da tradição poética. E a forma específica dessa tradição é o canto próprio do hino. O hino é um canto de louvor. Em relação à poesia portuguesa contemporânea, António Osório não só introduzia uma dicção mais antiga ou de carácter intemporal, mas também fazia uma inflexão que rompia com o carácter predominantemente elegíaco da poesia portuguesa. Esta poesia é legível a partir de uma ideia, cuja história semântica foi estudada pelo grande romanista Leo Spitzer: a ideia de harmonia do mundo, que ecoa, aliás, no título da sua poesia reunida: “A Luz Fraterna”. Esta ideia — e o tom que ela engendra — pode tornar-se uma doxa celebratória. É o que acontece sobretudo nos textos em prosa da fase mais tardia de António Osório.